MILAGREIRO

Tratei algumas vezes de um senhor que padecia de uma doença ocular crônica e que necessitava submeter-se a uma cirurgia para se libertar definitivamente daquelas crises que o atormentavam de vez em quando.

Noel era seu nome. Foi operado de catarata em um dos olhos pelo método antigo, da época em que eu iniciei na arte da Medicina. Ficou tão satisfeito com o resultado que esqueceu que deveria ou poderia operar o outro algum tempo depois. E assim passaram-se anos.

A catarata quando se torna hiper madura se liquefaz dentro das cápsulas e extravasam elementos orgânicos estranhos ao sistema imunológico. Então há uma reação de defesa do nosso corpo que ataca aquilo como inimigo. Verdadeira guerra e como toda guerra, todos entram no fumo, sejam inimigos militares ou civis que não têm nada a ver e nem queriam a luta. No caso específico a íris é o elemento mais afetado. A pressão do olho aumenta muito e juntamente com a inflamação a dor é violenta.

Ali também é assim: anticorpos combatem as proteínas estranhas e sobram farpas também para o que estiver ao redor. E dói! Como dói uma uveíte hipertensiva, nome bacana para o sofrimento do Noel. Fácil de tratar aquela crise, mas nenhuma segurança quanto a outras, a não ser eliminando-se a causa, ou seja, a catarata hiper madura.

E o senhor Noel ficava muito deprimido nestas ocasiões. Entrava pela porta do consultório estampando em toda sua feição o sofrimento e mais ainda porque ele sabia que eu voltaria falar em cirurgia. Não queria operar mais. Estava bom demais enxergando somente com um dos olhos, além do cagaço. Medroso como a maioria de nós, homens, nessas circunstâncias.

Numa dessas ocasiões, durante um governo qualquer (foram tão importantes para o nosso país que eu nem me recordo do nome) faltou nas farmácias um dos principais medicamentos, cortisona, com o tabelamento e os laboratórios que não estão nem aí para saúde de ninguém, deixaram de fabricar devido o preço baixo.

Preparei, então, a partir de um produto injetável e bem mais caro – este continuou a ser fabricado - um colírio para seu uso. Comprou uma ampola, um frasco de colírio - lágrima artificial - e uma pequena seringa para medição. Diluí o produto, etiquetei e ele o levou para utilizar como indicado na prescrição fornecida.

Dias depois a atendente anunciou que o Sr. Noel estava na sala de espera. Entrou, mas completamente diferente das outras vezes. Já da porta abriu os braços e caminhou na minha direção, rindo à toa e me deu um forte abraço. Anunciou que estava enxergando normalmente daquele olho cego há anos. Já adiantou que fora pelo colírio que eu preparei.

Imaginei logo o que deveria ter acontecido: luxou (caiu) a catarata para dentro do olho. E agora ele teria de operar de qualquer maneira porque as complicações seriam muito maiores. Levei ao microscópio e verifiquei que não fora o cristalino luxado: as cápsulas estavam no seu sítio, mas vazias. Certo ter havido ruptura delas e todo o conteúdo do líquido marrom havia derramado para dentro do olho e absorvido pelo organismo sem causar-lhe nenhum mal. Fenômeno que a gente não sabe explicar. Deveria provocar-lhe uma das maiores crises já sentida.

E não consegui fazer o Sr. Noel crer que não fora devido ao novo remédio que eu preparei. Ele era igual aos outros que usara nas crises anteriores, mas não havia meios dele acreditar. Eu fiz um milagre. Seu filho estava de joelhos e rezando na rua cheia dos vizinhos e a notícia já se espalhara pelo bairro.

Realmente a visão estava ótima e ele saiu muito alegre, distribuindo abraços para todos e contando o milagre para todos na sala de espera. Fiquei preocupado, mas fazer o que? Tempos depois ele apareceu novamente. Entrou não tão alegre com da última vez, mas também, via-se, não deprimido como nas visitas anteriores. Sentou e me fez um pedido:

- Doutor! Eu estou aqui porque aquele colírio acabou e eu precisava de outra receita para o senhor preparar mais. O senhor até podia preparar dois ou mais de uma vez....

- Mas Sr. Noel, pra quê? O senhor tem sentido alguma coisa depois daquele dia?

- Não! Nadinha. Eu acho mesmo que este olho enxerga melhor do que o outro operado. Acontece que depois do milagre com aquele remédio vai muita gente sofrendo das vistas lá em casa todos os dias e me pede para pingar uma gota dele. Gente assim, ó! E eu pingo! Agora ele acabou e o pessoal tá porque tá querendo mais. O senhor entende: eu não fiz milagre nenhum; quem fez foi o senhor.

Naturalmente eu não lhe forneci outra receita, sem antes explicar que o medicamento tinha até contra-indicações para certas doenças e não foi milagre nenhum, blá, blá, blá...

Tem cabimento? Logo eu? Zé Arigó de Friburgo: milagreiro! Eu não mereço!

29 de novembro de 2004.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 08/06/2009
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