O impropério que ri de si mesmo

Tantos deslizes não couberam em uma existência de incontáveis passos e inúmeros fracassos. As virtudes apodrecem de forma dadivosa ao lado das imperfeições e dos vícios. As possibilidades atadas e situadas entre um e outro são sobressaltadas pela razão – e negadas pela veemência da liberdade de se entregar ao precipício situado além do abismo. Óbvio. O humano pós-moderno é já um fóssil de si mesmo. A realidade objetiva é já uma maquete, um simulacro. Perde-se o referencial e as sobras restam sob o pano molhado de um tapete persa comprado em um mercado das pulgas no Leste Europeu. Conceitos deturpados, vontades direcionadas e necessidades irrequietas e atormentadas. Tudo é supra-alimentado e, paradoxalmente, subnutrido. Condenados à falência. Morremos todos de inanição conquanto ostentemos uma barriga cheia. Estou estupefato e quase puto. Falta pouco para as bombas humanas começarem a explodir. O que chamamos de perda dos valores, falta de sentido e violência gratuita não passam dos primeiros sintomas de qualquer coisa descartável e horrenda. Na verdade, talvez sejam elas o efeito de algo pior. Não sei absolutamente nada sobre o que há de vir. Mas, para o que quer que seja, esbravejo: “VENHA LOGO!” O melhor já passou antes mesmo de conseguir pronunciar um “oi, eu sou...”. Sempre me disseram que sou um suicida saído do livro O Lobo da Estepe, de Herman Hesse. Quanto mais me consumo, mais eu quero viver – ainda que tardiamente! Sim, ‘tarde demais’ existe. Sim, ‘tarde demais’ pode ser agora mesmo. Procuro e acho. Logo depois, náusea e tédio. O fastio é intenso. A estrutura é vil e bela. Em sua sinceridade incontestável, recebe-nos com requintes de crueldade. Morde e assopra. Ficamos confusos. “É a vida”. Assentimos quase tudo. Reclamamos muito pouco – o suficiente para que não nos rotulemos de completos idiotas. Mantemo-nos, então, protegidos na nossa própria mediocridade. O progresso não é mais tão charmoso. Precisa de uma nova capa – agora, de material reciclado. A orgia verde. E, verde atrai mais verde. É o que pensam, ao menos! O elixir se esgota. Há promessas demais, há soluções demais, há candidatos demais, há verdades demais, há produtos demais, há pessoas demais, há lixo demais... Vivemos na era do excesso do excesso. Mas, ainda há o amor – aquela velha cadela de seios flácidos, quase tocando o chão, com um grunhido insuportável, um olhar de fome e um rabo que aponta sempre na direção da esperança frívola que brota ao anoitecer e se esfacela dez ou vinte minutos depois. Eis o homem: fome e sexo! Os dentes rangem de frio e raiva. O descontentamento e a frustração flertam com a luz no final do túnel. E, ela, por pouco, quase que por um milagre, ainda não apagou. Mas não creditem o fato à benevolência de um Deus misericordioso, mas, sim, ao sadismo dessa mesma entidade fantasmagórica. Alguém espera para ser linchado em praça pública, pudica e moralista (ou moralizada). Outros – e esses fazem parte da maioria - esperam para o espancar. Os carros voltaram a se movimentar e a fila dos ingressos para assistir qualquer coisa idiota já enlaça mais de oito quarteirões. A metrópole é também uma província. No quarto, as janelas atestam o tédio de outras janelas – ainda mais para dentro sem necessariamente ser profundo. Passou voando. Nem faz tanto tempo assim, mas eu já esqueci ou superei.

Bernardo Almeida (www.bernardoalmeida.jor.br)