A funcionária nossa de cada dia

Num período de dois anos e meio, tive 10 empregadas domésticas lá em casa. Espantoso, né? Alguns amigos e parentes achavam-me exigente; outros, intransigente. Não sei se os adjetivos seriam sinônimos... Fato é que, quando uma delas completava 15 dias conosco, eu e meu pai, internamente, já comemorávamos. Mas o dia da despedida estava, com certeza, próximo; já supúnhamos. E todas as demissões/pedidos de demissão tinham uma característica comum: meu pai era canonizado por elas, e eu sentia o calor do fogo do Inferno! Isso porque, no dia-a-dia, eu era a responsável por instruções e recomendações e, desculpem a sinceridade, 80% das domésticas não querem ser instruídas, pedidas ou solicitadas.

A parte que cabia a meu pai era catalogá-las num fichário de documentos, guardando comprovantes que o contador nos enviava, ratificando nossa obediência quanto aos direitos das meninas. Mas, no fundo, sempre interpretei aquele arquivo como possível fonte de estudo para mim. Quem sabe, quando eu decidisse escrever uma monografia sobre a dificuldade em conhecer uma aliada doméstica... Ou uma crônica.

Posso agrupar minhas auxiliares (era isso que deveriam ser...). Houve as que bateram o recorde de uma semana a um mês de trabalho. Isso mesmo! Lembro-me da JC*, por exemplo, que chegou impondo duas condições: não comeria carne moída e não limparia o santuário da falecida dona da casa, pois não comungava de nossa religião. Sequer poderia tocá-lo. Além disso, aproveitava minhas ausências para catequizar meu pai, contra sua vontade, diga-se de passagem, apregoando o mal de sermos católicos; de, em sua linguagem, ‘adorarmos’ aos santos, ou de ouvirmos Padre Marcelo. Ecumenismo não constava em seu dicionário. A A* fazia a carne mais dura da Terra, o mingau mais líquido da Terra e deixava minha casa a menos limpa da Terra.

A M* personificou, durante uma semana, a santa que protege as domésticas, ingênua, prestativa e solícita. Depois, rodou a baiana, gritou, atirou sua bolsa em cima da mesa e esperneou, porque o peito de frango que fazia ficava sempre duro e intragável.

A AM* era tão alta e tão forte que eu tinha medo de contrariar qualquer decisão sua. Não tomava café requentado ou frio, mas o servia a meu pai. Não comia comida dormida, mas a servia a meu pai. Qualquer objeto deixado fora do lugar era atirado por ela na lixeira. Assim, perdi minha garrafinha de água que permanecia no PC, uma caixa recém-comprada para despachar uma encomenda por Sedex, e mais algumas coisas desnecessárias, de acordo com ela. Ah, foi nesse período também que nossas panelas perderam mais seus cabos, inexplicavelmente.

A L* era boazinha à beça. Suas tarefas preferidas eram lavar roupa, cozinhar e varrer a casa. Lavar banheiro ou cozinha, limpar vidraças, passar roupas... Quem precisa disso, gente? E o sofá da sala era seu habitat.

A C1* tornou-se tão amiga e íntima de nós que esperava sairmos para teclar no MSN e no Orkut, usando meu computador do quarto. E, para ficar mais prático, já salvava suas senhas e endereços. E teve a C2*, que contratei porque sempre me disseram que era mais fácil adaptar um funcionário a nosso ritmo e estilo, se fosse uma pessoa mais jovem, recém-chegada do interior. Bom, com alguns dias de trabalho, descobrimos que nos enganara sobre o quesito ‘ler e escrever’. Então, tivemos alguns embaraços com comidas e remédios, pois os reconhecia pelas cores das embalagens, negligenciando a possibilidade de trocarmos de marca de vez em quando... Como, na época, o sósia do Luciano Szafir nos visitava, prestando serviço como fisioterapeuta de meu pai, tive de remodelar seu guarda-roupa, até então, repleto de calça jeans com cintura mais baixa que rodapé, blusa de decote mais perto do umbigo que cós de saia ou de calcinha exposta nos quadris.

A E* é a recordista. Esteve conosco por um dia e algumas horas. Fez a entrevista e voltou no outro dia, para se inteirar do serviço. Declarou que comeria 6 a 8 fatias de pão de forma no café da manhã e no lanche, esvaziou metade da compoteira com doce de abóbora e coco, quase quebrou minha balança de banheiro com seus pesados quilos e disse não ser doméstica, mas governanta. Bom, nos deixou como lembrança algumas de suas roupas de trabalho.

A penúltima experiência, de 6 meses, foi dolorosa. A S* chegou como a experiente e despachada, sempre limpando, arrumando, escovando, encerando, ajeitando, lustrando, lavando. Foi embora e voltou. Retornou mais atirada e despachada, mais e mais limpando, arrumando, escovando, encerando, ajeitando, lustrando, lavando. Até que confessou, num dia triste, que escondera um problema de doença grave e teve de se transferir para outra cidade, para prosseguir com o tratamento e se foi, num dia mais triste ainda.

A R* completou onze meses e alguns dias. Seu problema era ser mais ocupada, em atividades extradomésticas, que o Presidente da Republica. Precisava sair cedo porque seria madrinha de casamento, para fazer unha, fazer cabelo, ir ao banco para um amigo de fora da cidade, para ir ao médico, ao dentista, à manicure, à pedicure, à cabeleireira, à festa na Região dos Lagos... Ufa! Numa véspera de feriadão, que precisou que eu lhe providenciasse luvas descartáveis, pois, se fizesse as tarefas da casa, estragaria suas lindas francesinhas maravilhosamente pintadas. Bom, sem poder conciliar os inúmeros compromissos com o trabalho da minha casa, teve que ser dispensada.

Bom, e hoje? Uma antiguíssima ajudante voltou e tem nos aguentado por longos meses. Ela lava, passa, cozinha, arruma. E não reivindicou a canonização de meu pai, nem minha incineração... Bom, finalmente o arquivo antigo foi lacrado.

* Optei por usar apenas as inicias das meninas, pois é de conhecimento geral que algumas domésticas adoram as leis trabalhistas. E revival de ex-funcionária, por um processo, ninguém merece!

Vanise Macedo
Enviado por Vanise Macedo em 11/07/2009
Código do texto: T1694204
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