Luar

Hoje o dia estava quente. A noite está quente e abafada. Meu quarto parece um daqueles fornos industriais em época de natal, assando perus depenados em massa.

Hoje o dia estava bonito. A noite está bonita e agradável. Da janela do meu quarto, no único vão estreitíssimo que eu tenho para o céu, enxergo em destaque a lua – cheia (gorda) – a me observar com seu único olho branco e brilhante. Estranho como estou me sentindo incomodado, esse enorme (olhar) luar gélido e puro – ainda que um pouco manchado – a me espreitar enquanto estou aqui, parado em frente a um papel também branco, tentando gastar um pouco a tinta fresca da minha caneta nova.

É complicado começar a escrever alguma coisa com essa imensidão espacial a observar todos os meus movimentos, cautelosa e minuciosamente, como que pensando por que eu não paro de olhar pra ela (da mesma forma como estou me perguntando por que ela não para de me olhar).

Acabo de reparar as manchas da lua. Incrível como mirá-las nos dá uma sensação ruim... É quase como se a lua quisesse maquiar suas indesejadas marcas de nascença tentando se esconder, seguindo seu caminho em arco no céu riscado de (nuvens) estrelas.

Alguns dizem ser cientificamente comprovado que a lua somente reflete a luz do sol. Bobagem. É muito brilho e muita beleza e muita intensidade e muito (pavor) fulgor pra ser apenas um espelho. A lua é um holofote muito mais do que um espelho. Os cientistas às vezes tiram toda a beleza da vida, transformando o fantástico em banal. Assassinos da mente!

E eu continuo aqui, impedido de pensar em algo para escrever e ao mesmo tempo impelido a continuar escrevendo. Como um garimpeiro que insiste em procurar ouro mesmo depois de já ter encontrado uma tonelada. Como um cientista que procura beleza na lua mesmo depois de dizer que ela só reflete os raios solares.

No relance de céu que me aparece, a visita noturna inesperada parece estar finalmente querendo se esconder e me deixar em paz. Já está quase sobre a chaminé que se projeta do telhado de casa, prateando a superfície metálica dos seus contornos.

Se for verdade que apontar para as estrelas dá verruga, mais verdade ainda seria se apontar para a lua desse sarampo ou varíola ou – por que não – provocasse a morte. Pensar nisso me dá arrepios, sempre fui muito imaginativo, criativo ou sei lá.

Agora minha companheira nesta noite solitária já se foi. De intrusa que era, passei a sentir sua falta! Como o ser humano possui turvações psicológicas, meu Deus! Somos eternas (aberrações) mutações, eternos (mutantes) revolucionários de nosso próprio ego que nos trai ao mesmo tempo em que nos fascina.

Não só sinto falta daquele biscoitinho manchado em cinza, como também até sinto um pouco de ciúmes. Agora ela deve estar espreitando outros tantos por aí, penetrando com desdém em suas futilidades, bisbilhotando suas intimidades, pra depois de quinze minutos sair, seguindo em sua eterna perseguição ao horizonte, deixando todos solitários como eu.

Lua, saudosa lua. Não mais vejo teu tracejo quase que liquefeito no chão do meu quarto. Não mais percebo o esparramar de tua orla transbordando na órbita de tua própria feição. Não mais sinto vontade de pensar em algo para rechear em preto o alvo papel que, ainda intacto, jaz à minha frente: escrevo quando me sinto solitário, e tua presença preencheu esse vazio.

Estou decidido. Vou deixar este papel exatamente assim como está, inteiramente branco.

Branco como a Lua.

Fernando em Pessoa
Enviado por Fernando em Pessoa em 16/07/2009
Reeditado em 20/07/2009
Código do texto: T1702890
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.