222 Caminhos ou Pequena Lírica Moderna

...E foi em uma ida ao cinema, assistindo a um filme que sequer era do seu gênero favorito, que a constatação caiu-lhe sobre a cabeça, como um piano. Ele precisava procurar alguém, pedir desculpas e falar-lhe tudo, de uma vez por todas.

Conhecia-a há anos, só que uma simples pergunta nunca fora satisfatoriamente esclarecida: por que não ficavam juntos? Ora, se ambos sentiam-se tão bem na companhia um do outro?

Não por raras vezes foram abraço festivo e ombro na dor. Não por raras vezes telefonavam-se no meio da noite, só para falar de frivolidades e rir. Foram anos de inúmeras confidências e segredos. Várias vezes com ele-com-alguém, ela-sozinha, alternando-se com ela-com-alguém, ele-sozinho. Não obstante, encontravam-se. E não por raras vezes, acabavam-se em noites tórridas. Exauriam-se na cama dele, ou na dela. Era tudo tão natural. Acordavam, ainda abraçados, arrebatados por uma paz infinita. O que era aquilo, afinal?

Então, algo acontecia, uma mudança, uma outra pessoa, um imprevisto e ficavam sem comunicação por algum tempo. Quando fortuitamente se encontravam se novo, perguntava-se “por quê?”. Era o tempo de relatar o que acontecera nesse meio tempo, comprazer-se com as alegrias e conquistas do outro, pedir conselhos sobre o que fazer da vida dali por diante.

Por vezes, ele ou ela deixavam escapar algo como “...se a pessoa com quem estou fosse como você...”. Então, desconversavam e mudavam de assunto. E sempre finalizavam a conversa com juras do tipo “nunca mais iriam deixar de dar notícias”. Quase certo de que alguma noite próxima eles seriam vistos entrando juntos no apartamento dela, ou dele. Não havia sensação melhor do que sentir a pele dela com os lábios, perfumada e quente. Ela não conseguia colocar em palavras o prazer indescritível do toque de quem a conhecia tão bem.

Da última vez que se encontraram, há cerca de um mês, ambos estavam sozinhos. Estava feliz e eufórico como um adolescente, havia a sensação de que precisava dizer algo, mas que lhe escapou da perspicácia. Ela também não disse, pois sabia em seu interior que os encontros caminhavam para um novo hiato.

O que havia naqueles encontros e desencontros?

Por quê, então? E por que diabos tinha ido assistir àquele filme? Estava sozinho, entediado... O que o teria feito assistir um filme água-com-açúcar, se na sala ao lado uma fila enorme havia se formado para assistir o mais recente blockbuster? Não por acaso, no cinema lembrou-se dela. De como se divertiam assistindo e comentando com empolgação as fitas. Se ela estivesse ali, certamente ia dizer que o diretor não tinha feito um trabalho tão bom quanto no filme anterior. Ele, provavelmente diria que deveria ter escolhido uma outra atriz para o papel principal, o que seria muito mais cabível. Os dois concordariam que teria sido muito melhor assistir ao blockbuster.

Maldito filme. Bagunçara suas idéias. Mostrou que as coisas andavam tão claras quanto dois e dois são cinco. Há algumas semanas andava flertando com uma nova moradora do prédio, linda... Porém, todos os pensamentos anteriores mandaram a lembrança da tal moça para o inferno, dizendo a ele que a dita-cuja não chegava aos pés “dela”.

Não, talvez não... talvez o maldito filme não tivesse realmente bagunçado as idéias. Dera a elas um norte.

Mas agora precisava de foco. Ligaria para ela. Agora mesmo. Não... Precisava pensar no que dizer... Achou que seria melhor falar pessoalmente. Pedir desculpas. Dizer que vinha agindo como um completo idiota. Temeu que se começasse a despejar um sem-número de palavras, ela realmente pensaria que ele passara a agir como um completo idiota.

Ligou. Passava das 10h30 da noite.

Ela atendeu como se tivesse longe do celular, com a ligação quase caindo na caixa de recados. A toalha enrolada, esbaforida.

- Oi! Desculpe a demora... Estava no banho... Tudo bem?

- Eu precisava falar com você... Posso ir até aí?

- Claro, mas... Aconteceu alguma coisa?

- Não, não se preocupe, eu estou bem... Só precisava conversar...

Ele arrumou-se, pensando. Dali a meia hora, tudo se resolveria. Diria que o que mais deveriam fazer era realmente ficarem juntos, e fim de papo. A vida seria muito mais maleável assim. Por que demorara tanto para decidir isso? Será possível que fora necessário um “filminho B” esfregar-lhe no rosto uma verdade tão óbvia?

Durante o percurso, a imagem dela não lhe abandonava. Ela estaria em casa, acordada, perfumada, maravilhosa, sozinha. Nesse meio tempo, quase acertou um hidrante com o capô. As buzinas dos carros de trás e o susto fizeram-lhe a cabeça doer e uma sensação esquisita se apoderou do seu corpo.

O que havia era ela. “Ela”, aquela ela. Ela que por vezes povoava sonhos, ela que era infalível companheira, ela que parecia tão inumanamente perfeita. O que seria dele, sem aquela segurança impalpável na qual se agarrar? O que aconteceria se aquilo tudo fosse maculado com os tormentos de uma vida comum e sem emoção?

Duas quadras antes de chegar ao local onde ela morava, dobrou violentamente à esquerda. Mais buzinas irritadas o seguiram. Ligou novamente para ela, dando uma desculpa. Prometeu que se encontrariam um outro dia, sem imprevistos. Precisava de mais tempo.

Certamente, ela acharia muito menos improvável que tivesse acontecido um imprevisto do que a verdade, que era muito mais pesada que o piano da constatação.

Ela simplesmente não acreditaria, talvez não teria pensado na hipótese de que ele não lhe batera à porta naquela noite, não porque tinha agido como um completo idiota ou porque estava jogando com sentimentos, mas sim porque a verdade era outra.

Foi por amar além do que conseguia suportar.

Mag DeFoe
Enviado por Mag DeFoe em 17/07/2009
Código do texto: T1704778
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