Gripe suína 3: Teatro - Neurose da gripe!

O grande cenário está pronto e a apresentação reinicia-se diariamente, nestes dias de rigoroso inverno no sul:

1º ato: Ela acorda e constata: respiro, logo estou viva! Respira fundo novamente. Sente os pulmões, o peito, tudo bem, não sentindo nada estranho, vibra em seu interior: graças, não fui infectada! Sobrevivi mais uma noite e tenho mais um dia pela frente! Então, começa o ritual do despertar da família. Um a um acorda e vai levantando-se. Atenta a cada ruído: ela percebe que todos acordaram e ninguém espirrou, ninguém tossiu... Aleluia! Também sobreviveram mais uma noite livres de contaminação! Preparam-se então para iniciar a rotina diária, ela começa listar as recomendações: Lembrem-se de levar as máscaras; Não esqueçam de higienizar as mãos com o álcool gel, cuidem aonde vão e com quem vão contatar e... e... e... até que alguém perde a paciência: Tudo bem, você já falou, chega de ‘neura’! Aliás, a ‘neura’ é quase coletiva!

2º ato: Todos saem para o trabalho é hora de iniciar a sua rotina diária. Nova rotina, diga-se, a escola está fechada e não precisa sair para o trabalho, um tanto melhor, menos chance de contaminação. O telefone toca, o coração estremece: a voz do outro lado avisa que a sobrinha menor está febril e vai ao médico. Precisa fazer algo para ocupar-se enquanto aguarda o parecer médico (que felizmente mais tarde confirma tratar-se apenas de uma amigdalite) Que fazer para ocupar o tempo livre? Quem sabe ler os jornais? Não! 'ELE' está em todas as páginas! Poderia assistir tv... não! Da mesma forma, o assunto preferido da mídia também é este! Talvez ouvir música. Liga o rádio: Atenção, atenção! Interrompemos nossa programação para informar que tivemos mais duas vítimas fatais esta noite no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital... Desliga-o imediatamente! O telefone toca novamente. Uma velha amiga liga para aconselhar: não saia de casa, a situação é séria, um amigo do esposo, fôra levado às pressas para a cidade vizinha, em estado grave. Apela para suas orações. Se refaz e resolve acessar a rede, na página inicial, a manchete: “O sul sofre com os efeitos do frio rigoroso e da pandemia... não descarta-se a possibilidade de decretar-se estado de calamidade pública.” Efeito ‘gremlins’ eles estão por toda parte! Que fazer? Precisa ocupar-se. Seguir os conselhos médicos? Talvez!

3º ato: Inicia então a maratona de cuidados com a imunidade!

Escolhe os alimentos com mais nutrientes para contribuir neste sentido. Lava cuidadosamente frutas, legumes, verduras, carnes e prepara: sucos, chás, sopas, pratos nutritivos e quentes de inverno.... A família se reúne para o almoço. Após os devidos cuidados de higienização, naturalmente. Logo, logo o assunto, vem à baila: _ Hoje a filha do chefe que trabalha no hospital, foi afastada do trabalho irá ficar de quarentena e repetirá os exames a cada dois dias; Outro: _ Lá na firma chegou um caminhoneiro argentino que há dezessete dias está viajando, quando ele falou isso, corri e distribui máscaras para todos os funcionários; Alguém precisa dar um para te quieto e, um dos filhos interrompe: _ Vocês estão ficando neuróticos! A coisa não é bem assim, ano passado morreu muito mais gente e ninguém fez este estardalhaço, alguém 'tá' ganhando dinheiro com isso...

4º ato: Refazendo-se dos últimos comentários, à tarde para ocupar seu tempo decide ir à cabeleireira. De chegada ouve: “Estou me refazendo, após uma semana de internação. Graças a Deus foi alarme falso, meu irmão, no entanto, está no CTI. Não leu o jornal hoje? A matéria da capa era essa: Haviam seis pacientes no CTI, quatro fizeram óbito, um saiu da unidade e está em recuperação e, o outro paciente permanece em estado grave. Este é meu irmão.” Sente vontade de lhe dar um abraço de solidariedade, mas a vontade de desistir e sair correndo é maior. Porém, constrangida disfarça, vai até a bolsa, discretamente hiegieniza as mãos com seu álcool gel e, visivelmente desconfortável, dispõe-se a que veio, contando os minutos para acabar logo seu corte de cabelo.

5º ato: Vê-se livre finalmente, na rua! Na rua, livre? Lembra-se que precisa comprar alguns presentes para o aniversário de familiares. Entra numa loja a uma certa distância da vendedora, procura pelos presentes sem tocar em nada. Uma loja, duas lojas, na terceira loja já esqueceu as recomendações, quando se dá conta já tocou em inúmeros produtos. Toma um susto, se refaz. A balconista tem uma aparência saudável, pensa! Sai andando novamente pela rua, encontra uma amiga, fica na dúvida: abraço ou não abraço, afinal dias atrás, outra amiga quase negou-me um abraço. Arrisca! A amiga saudosa retribui o abraço, mas adverte: ' _que anda fazendo com este frio terrível, cuidado! Previna-se! Use Bálsamo Alemão!' Entra na primeira farmácia (lotada), uma jovem bonita, espirra e tosse incessantemente. Uma senhora e uma criança usam máscaras. Pergunta à atendente porque não estão usando máscaras, a moça responde-lhe que o cuidado maior deve ser o contato com as mãos. Pára, pensa: toquei na maçaneta da porta, no balcão, no teclado do aparelho do cartão de crédito e... e... Sai da farmácia que coincidentemente, fica ao lado de duas funerárias onde vê nada mais, nada menos do que três convites para enterro afixados. A neurose aflora de novo!

6º ato: O dia está quase findando. Felizmente! A hora da terapia é chegada! Novamente, maçaneta da porta, elevador, pessoas espirrando... Realmente, cinqüenta, sessenta minutos é pouco tempo para refletir tantos sentimentos aflorados. Mas é o tempo suficiente. Sai da terapia fortalecida! Volta para casa, ascende o fogo na lareira, prepara um caldo quente para acolher a família e sente-se pronta para enfrentar mais uma noite, em que finalmente ao deitar-se, poderá dizer ao seu travesseiro: '_espero te dar um pouco de sossego hoje! Afinal, tenho te cansado demais revirando-me na cama. Prometo não reiniciar a via crucis da revisão do dia, na tentativa de identificar possíveis situações de contaminação, possíveis erros cometidos no cuidado com os filhos asmáticos, com os pais idosos, com a sobrinha grávida, com a filhinha da amiga ‘será que não a contaminei com aquele beijo’ e... e... enfim, podemos tentar amigo?'

Último ato: Seria essa neurose, fragilidade apenas desta mulher?

O temor social existe, os fatos são reais, o último ato deste teatro, no entanto, só o sabe o verdadeiro autor da peça. Aos atores em cena, basta que não abandonem o palco antes da trama final. O que ocorre, é que muitas vezes, os atores esquecidos de ocupar seus espaços no palco da vida, deixam-na exposta e bem mais suscetível ao vírus do medo, do que do próprio H1N1...

Gelci Agne
Enviado por Gelci Agne em 02/08/2009
Reeditado em 05/06/2010
Código do texto: T1732863