"O CARA"

Ele “o cara” até aos 12 anos de idade não tinha freqüentado nenhuma escola. Aprendeu a ler precariamente com as pessoas que conheciam o alfabeto e juntavam palavras - professoras do interior.

Não conhecia televisão, apesar de ter nascido no século XX e morar a poucos quilômetros de uma cidade com mais ou menos 80 mil habitantes e com alguns indícios de progresso.

O divertimento para as crianças em um local aonde a energia ainda não chegou e não se tem acesso a vídeo game, nem banca de revistas muito menos ao computador, é jogar peão, bila, tomar banho no rio e caçar frutos silvestres e passarinhos.

“O cara” fez tudo isso, até que um dia veio morar na cidade. Aprendeu a ler rapidamente, concluiu ensino médio, ingressou na faculdade e de imediato posicionou-se no mercado de trabalho. “O cara” era inteligente!

Hoje “o cara” relembra com saudades das noites em que a lua disputava com o lampião a claridade, iluminando as rodas onde os moradores daquele pequeno local contavam conversas fantasiosas de fantasmas, de lobisomem e de heróis.

Esse “cara” conhece todos os cantos dos pássaros, o bem – te- vi, fogo -apagou, rolinha, galo campina, pica – pau, bico latão, cabeça vermelha, anu, sabiá. Fica encantado quando na cidade escuta o canto de um deles e pára para escutar suas melodias. Não compreende como em algum tempo teve a coragem de mirá-los com uma baladeira e acerta-lo levando-o a sucumbência. Não entendia “o cara”, naquela época, que o menino herói do interior tido como aquele que mais acertava com pedradas os frutos das árvores nativas e as aves com sua atiradeira era um degradador da natureza.

“O cara” cresceu, educou-se, não tem mais como morar no interior, apesar de sua eterna presença na sua vida, na sua história, no seu cotidiano. A cidade é outra coisa, tem civilização, tem conforto, tem progresso.

Civilização onde o homem luta pela vida, pelo poder, agride-se e se matam. Na cidade tem conforto. O espaço é minúsculo, as moradias uma em cima da outra, não se planta e não se colhe, nem mesmo as amizades. Na cidade tem progresso. Tem energia, televisão, ar condicionado. Mas não se tem tempo de apreciar a lua, sentir a brisa no rosto, nem tem as rodas de amigos verdadeiros e com histórias interessantes para uma prosa sadia.

“O cara” sente saudades principalmente da mesa farta, do capote morto na hora, do peixe tirado do rio para mesa, do feijão colhido ali na sua cara e reclama da falta de espaço. Tudo pequeno e apertado. Que civilização! As casas cada vez mais minúsculas, os carros muito apertados. É um problema para viajar. Qualquer porta mala é pequeno para as bagagens. No pau de arara sim, tinha espaço, para transportar, bode, galinha, bicicleta e sacas de arroz, feijão e farinha. Mas ele é um “Cara”, porque apesar de tudo, de um modo geral, soube conviver muito bem na cidade.

Ali e acolá, diz as deles ao estranhar a civilização. Se numa mesa de almoço onde as comidas estão em quantidade normais para os urbanos ele espera todo mundo se servir para saber se sobra. No interior é diferente, a mesa é farta. E a última do “cara”?!! Deixou de enviar uma máquina fotográfica, que tinha menos de um palmo, para alguém que estava necessitando urgentemente, porque o transporte do portador da encomenda era um “New Beetle”. Não tinha espaço.

Este “Cara” é um cara e muito mais que um “cara”!!!!

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 13/08/2009
Reeditado em 02/05/2020
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