FASE RUIM

FASE RUIM

O rapazinho carrega aquele trem que o baleiro usa para colocar suas balas (Se o leitor não é mineiro, não estranhe. Aqui em Minas é assim mesmo. A gente chama de trem tudo que a gente esquece o nome.). Ao mesmo tempo em que outro jovem, compridão e dotado de uma magreza desnutrida, aproxima-se e fica perto dele, o rapazinho aproxima-se da roleta e, em pé, começa seu discurso monotonamente ritmado:

_ Atenção, meus senhores. Atenção, minhas senhoras. Um bom dia para todos! Desejamos que o Senhor derrame suas bênçãos e proteja a todos. Estamos aqui, eu e meu amigo, porque a gente precisa trabalhar para sustentar nossas mães desempregadas e nossos irmãos menores. A gente podia estar aqui, neste ônibus, vendendo para os senhores e senhoras balas, chicletes ou outra coisa parecida. Mas não. Vender balas não é legal. Quase ninguém compra. Por isto, minhas senhoras, por isto, meus senhores, a gente prefere assaltar. É mais divertido e lucrativo.

_ Agora, se alguém quiser bala, é só reagir! – Fala com voz firme o rapaz que se postara atrás dele, do outro lado da roleta, após pegar um dos revólveres que estavam escondidos debaixo de um pano encardido que se encontrava no trem do “baleiro” carregar suas balas e guloseimas.

O alvoroço toma conta do ônibus, mas, todo mundo se “acalma”, quando o falso baleiro pega outro revólver e ameaça atirar em quem está alvoroçado. Depois, vem a “limpeza”. Os rapazes agradecem e, com o trem de carregar balas cheio de dinheiro, celulares e outros objetos de valor, saltam do ônibus e desaparecem num matagal escuro.

Concluo, após o assalto que devo considerar-me um homem de sorte, já que os rapazes não tiveram tempo de perceber meu celular escondido no bolso da minha calça. Também fico aliviado por não terem se interessado por meu cartão de banco nem por meu cartão de crédito. Meu prejuízo não passa de doze reais. Pior foi o passageiro ao meu lado, que teve seu salário, recebido minutos antes de pegar serviço, quase todo levado pelos assaltantes.

Não espero a polícia. Pego outro ônibus e vou para a escola onde trabalho à noite. Começo, então, a refletir sobre a minha vida. Concluo que existem coisas piores do que ser assaltado. Não. Não estou falando do menino da minha vizinha. O tolinho, no auge dos seus três aninhos, apenas me alertou, quando, apontando para a minha barriga, perguntou inocentemente:

_ Moço, cê comeu muito? A minha mãe falou que quem come muito é que fica assim...

Claro que dei uma resposta para o menino. Uma resposta constrangida e cheia de culpa, mas dei:

_ Comi sim, meu filho. Comi demais...

O menino não tem culpa de nada, apesar de ter sido severamente repreendido pela mãe. Eu mesmo, até que ri da situação. . O que me incomoda não é estar gordo. O que me incomoda é ser professor da rede pública.

Após dois anos afastado da sala de aula, achei que ia voltar e encontrar as coisas melhores. Mas não. As coisas estão piores. Para reassumir meu posto na sala de aula, tive que me transferir de escola. E, ao apresentar-me na minha nova escola, novamente fui muito mal recebido. E tudo porque, de novo, havia um contratado que, com a minha chegada, ia perder o seu precário e inseguro emprego. O diretor da escola para onde fui transferido quis me encaixar (no bom sentido, é claro) com metade das minhas aulas de manhã e a outra metade à noite. Não concordei, bati o pé para ficar com meu cargo completo de manhã e, com isso, já cheguei na escola ganhando a antipatia do meu novo chefe.

No primeiro dia de trabalho, em reunião com os novos colegas, descubro que não posso adotar livro didático. Os alunos não têm como comprá-lo e o governo não fornece livro de História para aluno do ensino médio. Ótimo! – Penso – Farei uma apostila e, se tiver tempo, talvez até produza alguns textos.

Vã pretensão! Descubro também que a escola não tem papel para fornecer ao professor que quer elaborar sua apostila. Serei, então, obrigado a deixar uma cópia de cada apostila no xerox, para que os alunos mandem tirar cópias e paguem por elas. É o único jeito que funciona, asseguram-me meus colegas. Se eu quiser, também posso tirar quarenta cópias do texto, pagas por mim, e distribuir para os alunos, recolhendo ao final de cada aula.

No primeiro dia de aula, levo um texto com quarenta cópias que tirei na papelaria perto da minha casa. O texto aborda a questão da violência. Faço uma discussão com os alunos, dou um trabalho e decido passar, nas aulas seguintes, “Uma Onda no Ar” para as minhas turmas.

Alugo a fita e levo para a escola. A TV da escola, única que lá existe, é um cacareco (Atenção jovens: cacareco, para nós mais velhos, é um trem velho.). Ela só fica no volume máximo. Chamo vários funcionários da escola, mas ninguém sabe mexer na TV. Falam que ela está estragada. Um aluno, porém, enfia um araminho no buraco onde devia ficar o botão de controle de volume e consegue colocar a TV num volume suportável. Assistimos a uns vinte minutos de fita que, percebo, prende a atenção dos alunos.

No dia seguinte, volto com a fita e não encontro a TV na escola. Foi levada para o conserto e ninguém me dá notícia de quando ela volta. Vou ter que replanejar tudo. Faço a discussão do trabalho que dei anteriormente com os alunos, encerro o assunto e decido iniciar o conteúdo de História no dia seguinte.

Juro para mim mesmo que eles não vão me fazer desistir. Eles vêm tentando fazer com que eu desista há trinta e dois anos. Se fiquei dois anos fora da sala de aula., foi movido por motivos pessoais. Jamais foi por causa deles. É uma conspiração. Fazem isto para que professores desistam de ir trabalhar e os alunos, com isso, fiquem de horário vago na escola. Assim, o estado economiza, ao mesmo tempo em que ninguém pode acusar o governo de estar negando ao aluno o sagrado direito à educação.

Meus pés doem. A maioria das salas de aula não tem cadeira para o professor (algumas não têm nem uma mesa decente). São quatro horas em pé. Tenho pés chatos, peso cento e dez quilos e tenho uma prótese de platina no lugar do fêmur. Ficar em pé tanto tempo provoca-me dores quase insuportáveis.

Mas, prometo de novo para mim mesmo: não desistirei. Por mais que eles tentem, não me farão desistir.

Um dia, perguntaram a Getúlio Vargas: “Quantas horas são?”. E ele respondeu: “Duas e dez”. Isto me faz pensar que, se até os grandes homens falam e fazem coisas sem grande importância, por que logo eu tenho que bancar o diferente? Sei lá. Às vezes, penso em largar tudo e abrir uma sacaria. Mas aí, quando lembro que estou descapitalizado e que meu estoque está zerado, desisto da idéia e volto ao firme propósito de jamais desistir.

Por mais que eles conspirem para isto...

Luiz Lyrio
Enviado por Luiz Lyrio em 18/05/2005
Código do texto: T17655