Vamos sorrir gente...

É inegável que o termo rotina signifique algo (quase) insuportável, porém a maioria esmagadora da população vê-se obrigada a seguir um certo "ritual" todos os dias. Isso é especialmente verdadeiro para quem anda de GOL (Grande Ônibus Lotado, como diziam na minha época), mas hoje chamam de GOLF (Grande Ônibus Lotado e Fedorento).

Há uma música - bastante conhecida, diga-se de passagem -, do Chico Buarque, chamada Cotidiano (1971), a qual trata muito bem do tema rotina.

Essa semana, passei por uma situação que põe à prova a "teoria" do Chico.

Com o recente "esporte" que estou "praticando" (andar de ônibus), vejo todos os dias, excelentes oportunidades de transcrever os acontecimentos ocorridos no coletivo, quase sempre dignos de menção. Não seria novidade nenhuma mencionar que fila, educação e respeito, parecem ser conceitos desconhecidos para grande parte das pessoas quando o veículo "encosta" no terminal. Além das "caras fechadas" e daqueles alheios a tudo, existem ainda aqueles que só criticam (para variar). Independente disso, procuro ter sempre à mão um bom livro para tentar aproveitar o tempo "ocioso" enquanto me locomovo até o trabalho, porém não posso deixar de perceber e ouvir o que se passa no "ambiente". É alguém que toma o ônibus errado, pedem para descer pela porta do meio - normalmente a condução está LOTADA nesse horário -, reclamam com o trocador, xingam o motorista - que estão ali ganhando seu "pão" honestamente -, reclama-se porquê está sendo imprensado, e até brigam (de tapa) - pasmem -, porque alguém foi chamada de "esposa do cobrador" quando outra tentava defender o profissional que naquele momento tem que ser um misto de Madre Teresa e Freud. Em suma, um escritor talentoso como Veríssimo, faria excelentes crônicas sobre essas situações.

Mas não é especificamente sobre a rotina que pretendo falar, e sim sobre as atitudes que podemos ter todas as vezes que nos depararmos com ela.

Mais uma vez com vez com o livro à mão, e dentro do ônibus seguindo a minha *rotina*, ouvi alguém com voz afeminada e alegre gritar: "Vamos sorrir gente!...". Não dei muita importância e tentei continuar a leitura. Porém voltei a ouvir a mesma voz dizendo algumas frases que não consegui identificar. Parei novamente a leitura e passei a prestar atenção no que estava acontecendo. A mesma voz continuava a dizer: "... passe minha senhora...", "por favor amigo...", "vamos gente!...", "cara feia não resolve nada, eu preciso passar e vocês precisam colaborar...". Aquilo me chamou a atenção, fiz mais uma pausa na leitura e passei a ouvir com atenção o que aquela pessoa dizia.

Enquanto percebia sua aproximação através da "clareza" de sua voz, ouvi alguém sussurrar em tom grave - voz masculina - logo atrás de mim: "... la vem a estrela..."; na sequência, uma mulher que estava próxima comentou descontraida : "ele é que está certo, temos mais é que sorrir mesmo, a vida já é tão cheia de complicações...". Foi só ai que percebi se tratar de um homem...

Qual não foi minha surpresa ao perceber que o dono da tal voz "estacionou" próximo a mim. Era um rapaz, com no máximo 20 anos, segurando entre ombro e cabeça uma volumosa e desajeitada bolsa preta. Tentei voltar à leitura, inutilmente. Quando havia dado o assunto por encerrado, eis que esse mesmo indivíduo começa novo diálogo - sempre bem humorado - com outras pessoas relativamente próximas, ao que pareceu, conhecidas dele.

O fato é que esse rapaz modificou completamente o ambiente a sua volta. Onde havia semblantes sisudos, agora via-se faces relaxadas e sorridentes. Entramos literalmente no "clima" dele.

Como estava sentado, pedi para levar sua bolsa, que mal fechava de tanta coisa dento, ele não se fez de rogado e acrescentou: "está vendo menina, já consegui até quem leve as nossas coisas...".

Entre uma "gracinha" e outra, ele foi conversando com todos, e até os "machões de plantão" não resistiram e caiam na gargalhada. Durante uns dez minutos, desfrutamos dessa agradável companhia, até que ele me pediu sua pesada bolsa e despediu-se nesses termos: "muito obrigado meu senhor, um excelente dia para o senhor...", ao que respondi timidamente: "para você também...". Mal abaixei a cabeça tentando organizar as idéias e logo ouvi sua voz novamente: "bora meu povo! eu preciso descer e vocês também!", entre risos e comentários, lá se foi alguém que tinha tudo para ser mais um "reclamão mal humorado" diante da rotina.

Quando ele desceu, não consegui acompanhar e o perdi de vista. O restante da viagem, alguns pensamentos vieram à mente até que, já chegando no trabalho, flagrei-me ainda pensando sobre o assunto.

Dessa experiência, pude apreender três lições:

1) É possível aprender mais em alguns instantes do que com muitos livros;

2) Se homosexualismo for doença, o mundo precisa de mais "doentes" como esse;

3) Diante das dificuldades (e rotinas), sorrir e encarar as coisas doutra forma, facilitam bastante e podem modificar o dia de muitas pessoas.

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"Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando; falei como um palhaço mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria." - Charles Chaplin