SARDENTA

SARDENTA

Ficava irritada quando a chamavam de sardenta. Não que o apelido não lhe fosse apropriado, afinal, desde criança exibia simpáticas sardas no rosto. Desde os tempos de escola, o apelido a irritava. Quis descobrir um meio de retirar todas as sardas. Assim não seria mais importunada. Passou cremes recomendados pelas amigas da mãe. Não resolveu.

Cresceu e fez faculdade de Medicina. Formou-se Dermatologista. Aplicou em si mesma, muitas das fórmulas que aprendeu com professores e livros de medicina. Se não resolveu, pelo menos conseguiu amenizar um pouco o problema. Vivia maquiada. Na maquiagem encontrou uma forma de esconder as sardas.

Casou-se com o único rapaz que teve a gentileza de apreciar outros de seus atributos que não fossem as indesejáveis sardas. Separou-se por este motivo: as sardas. Um dia, pegou o marido, também médico, conversando ao telefone referindo-se a ela como sardenta. As brigas tiveram início naquele dia. Outras brigas vieram, por outros motivos. A menção das sardas naquele telefonema fez com que reagisse à altura: começou a zombar do marido por causa do nariz comprido, das gordurinhas na cintura, dos pés “dez para as duas”. Trocaram os plantões médicos: um chegava em casa, outro saia. Acabaram nos tribunais depois que já não suportava mais o marido. Mesmo recebendo o pedido de desculpas do marido, que jurava que lhe atraiam as sardas e que ainda a amava, não o perdoou. Quase trocou de advogado quando este declarou, em tom sedutor, que as sardas lhe caiam bem.

Decidiu fazer análise. A separação tumultuara-lhe a cabeça. Aprendeu a conviver com o problema. Ficou menos irritadiça. No fundo, no fundo, ainda lhe incomodavam as sardas. Mas aprendeu a não reagir. Quem sabe, com essa estratégia, não dessem tanta importância? O que ela não percebia é que era impossível não lhe notarem as abundantes sardas que lhes cobriam o rosto, os ombros e o decote. Seguiu a vida. Conheceu outra pessoa. Apaixonou-se por ela. Já estava com trinta e cinco anos quando se casou pela segunda vez. Não com aquele homem que lhe havia despertado a paixão. Casou-se com outro. Um amigo de faculdade. O namorado anterior não desejava o tipo de relacionamento que queria. O amigo, ao menos, era uma referência segura dos tempos da juventude. E, mais importante, nunca a tinha chamado de sardenta.

Teve filhos. Três homens. Um deles também nasceu sardento. Na rua, entre os amigos de futebol, era chamado de “Pintado”. O menino ria-se do apelido. Adotou para si a referência: “Pintado”. Fez das pintas a sua marca registrada, um atrativo. Namorou as garotas mais bonitas do bairro. Brincava com o apelido dando-lhe conotação sexual. Tudo porque um dia uma colega de classe perguntou-lhe se tinha sardas em todas as partes do corpo. Respondeu que sim. Seguiu-se um riso malicioso entre as meninas da classe. Despertara a curiosidade delas. Uma resolveu conferir. Foi a primeira de uma série de curiosas que se aproximaram apenas por causa das pintas. E, lógico, do seu imenso carisma. Além de pintado, tinha essa característica: a facilidade de se relacionar.

Só se lembra de ter esquentado a cabeça uma vez por causa das sardas. Aproximou-se de uma menina mais velha e ela chamou-o de "Filhote de Tico-Tico". Não foi por causa das sardas que esquentou a cabeça, mas pelo desdém que percebeu na voz da menina ao pronunciar o desaforo: “Filhote de Tico-Tico”. Mais tarde soube que a intenção da garota não se devia apenas às suas sardas. Mas também às sardas da mãe. Por isso irritou-se. Sabia o quanto a mãe detestava aquelas sardas. Que mexessem com ele, tudo bem. Já havia transformado as sardas em marca registrada. Mas, que não pusessem a mãe no meio.

Resolveu dar o troco: passou a chamar a menina de “Copo de Leite” por causa da brancura da pele e dos enormes seios. A adolescente levou a ofensa a sério. Recolheu-se da turma. Passou a usar vestidos que lhe diminuíam os seios, mas nas aulas de ginástica não tinha como esconder os seios balançando quando jogava na quadra de esportes, despertando o coro dos meninos: “Vai Copo de Leite”. Tentava convencer os pais a lhe encaminhar para a cirurgia plástica. Foram anos de terror: ela e aqueles seios enormes. Já não era mais a mesma por causa do apelido: “Copo de Leite”. Quando entrou no segundo grau mudou de colégio. Aquele infeliz apelido já tinha seus derivados: “Jarra de Chope”, “Mamão e Acerola”, “Vitaminada”, “Milk Shake”.

Passaram-se os anos: ele fez jornalismo e foi trabalhar em uma emissora de tevê local. Ela fez Nutrição. Um dia se encontraram no shopping. Ele, mais velho, de paletó e gravata, gravava uma reportagem sobre a promoção de uma loja. Ela ficou no meio da inevitável multidão de curiosos. Não podia esconder o orgulho de ter estudado com aquele repórter de televisão. Falava para as atuais amigas sobre a passagem da adolescência onde se atracavam no pátio a desferir apelidos: “Filhote de Tico-Tico”, “Copo de Leite”. Ria-se ao se lembrar dessas maldades adolescentes, já superadas como fazem as pessoas depois que amadurecem.

Um dia se reencontraram. Conversaram amistosamente. Estavam mais velhos, mais maduros, perto dos trinta. Ela havia desenvolvido um belo corpo onde os seios combinavam harmonicamente com a silhueta. Os dois anos de diferença que ela tinha sobre ele já não eram tão perceptíveis. Namoraram. Casaram-se na igreja do bairro. Tiveram um filho. Este não tinha as sardas da família do pai. Mas a sogra ainda guardava um pé atrás por causa da ofensa da adolescência. Ela soubera da referência às suas sardas pelo filho, na época em que a mãe da garota foi à escola reclamar do apelido que ele dera à menina e ela, Sardenta, foi chamada pelo diretor do colégio para responder pelo filho. Ficou furiosa e deu razão ao filho. Ainda não tinha perdoado a nora por isso.

Das três noras era aquela com quem menos se dava. Tratava o neto com carinho excessivo. Vivia criticando a nora por causa dele. Se esfriava, o menino não estava devidamente agasalhado. Se esquentava, o menino estava agasalhado demais para a época. Brigava quando a nora permitia que a criança fizesse artes. Isso não era forma de dar boa educação ao neto. Mas, se a nora chamava a atenção do neto por alguma traquinagem, enchia o menino de mimos como se a bronca fosse injusta.

O filho ficava calado vendo a disputa velada entre a mãe e a esposa. Percebia que as cunhadas recebiam melhor tratamento. A mãe as tratava como filhas. Menos a mulher. Esta recebia tratamento mais distante: de intrusa. Como um inimigo cuja convivência obrigam-nos a manter. "Pintado" conversou inúmeras vezes com a mãe e a mulher sobre isso, mas não adiantou. Ambas tinham personalidade forte e não cediam.

Afastou-se aos poucos da mãe para preservar a mulher que lhe era tão querida. Foi promovido na emissora. Ganhou um posto de correspondente em outra cidade. Mudou-se e, por causa da distância, afastou-se de vez. Só voltou à cidade quando a mãe morreu.

Olhou a expressão tranqüila da mãe no caixão. As sardas ainda lhe marcavam o rosto, já mais esquálido por causa da doença que a vitimara.

Afastou-se para reunir-se aos irmãos e cunhadas para as condolências dos amigos da família. Abraçou a mulher e o filho em silêncio respeitoso. Notou quando um senhor grisalho se aproximou do caixão e afagou o rosto da mãe com carinho. Notou também que o homem tinha os olhos umedecidos e a voz embargada. Ouviu o homem pronunciar baixinho, com doçura, algumas palavras: “Adeus Sardenta! Descanse em paz”! Ele deu um beijo na fronte da morta e saiu de mansinho com seu andar “dez para as duas”. Foi tomar um café na esquina! Tomou um taxi e desapareceu na tarde fria.

Paulo S M Carneiro – 07.09.09

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 07/09/2009
Reeditado em 08/10/2011
Código do texto: T1797047
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