NAMORADA

Depois que a casa silenciava e a vizinhança descansava na penumbra, esperava o namorado voltar da faculdade e pular a janela. Quando não faziam amor, discutiam aos sussurros sobre música, Literatura, filmes. Planejavam viagens para Petrópolis, Serra de Itatiaia, Joinville e Vitória. Esquematizavam modelos de roupas para festas de início de julho, meados de setembro e pouco antes do natal.

Os encontros propiciaram intimidade. A intimidade gerou rotina. A rotina produziu tranqüilidade. A tranqüilidade desaguou na acomodação. A acomodação a esqueceu de avisar ao namorado que passaria a noite com a avó, internada numa clínica para exames de rotina.

À saída, o pai a beijou, agradeceu pela disposição e pediu que cuidasse da mãe, enfermeira na mesma clínica de internação da avó. Enquanto acenava para a filha e para a esposa, esboçou desgosto ao perceber os vizinhos desembarcarem instrumentos para os ensaios de rock, realizados nas noites de quarta-feira. Além de não ter opções na televisão, se irritaria com os acordes desconexos dos que se diziam músicos. Músicos mesmo eram Amado Batista, Sergio Reis, Tonico e Tinoco, Vela Branca e Defunto, Macarrão e Extrato de Tomate e, da nova guarda, Leão e Leopardo, Roupa Velha e Remendo, Tuberculose e Lambedor, Irmãos Cabelão, Noiva Virgem e Garanhão, Claudia e Claudiana.

Antes do fim do telejornal, a guitarra estrondou a parede da sala e estrepitou no quarto. Foi até a praça, engoliu um sorvete, uma Coca-Cola e um cachorro-quente. Voltou desesperançado, tomou um banho frio. Contando palitos e moedas velhas, os olhos fechando de sono. O quarto da filha. Ajeitou a cama, fechou a porta e o barulho praticamente desapareceu.

Ligaria o ventilador, porém se lembrou da conta de energia elétrica que consumira um terço do orçamento: microondas, lâmpadas acessas desnecessariamente, chuveiro elétrico, ferro de passar, bateria de celular, secador de cabelos, máquina de lavar-roupas, sistema de segurança, televisão, rádio, dois computadores...

Passava um pouco das onze horas quando escancarou a janela. Deitou-se comodamente. O vento fresco exigia cobertor que lhe impedisse gripe. Fechava os olhos involuntariamente quando ouviu um fôlego, entrecortado, duas mãos no parapeito e um pulo dentro do quarto.

As imagens de um ladrão armado passaram-lhe na cabeça e as vozes do bom senso o orientaram a esperar o momento adequado para enfrentá-lo. Bem possível que o ladrão tivesse três revólveres: dois para o trabalho diuturno e um reserva.

Poderia trancar-se em seu quarto e de lá chamar a polícia, mas foi surpreendido por um discurso insólito:

- Oi, amor. Cheguei mais cedo hoje. Pensei que nunca acabaria aquele raio de prova de processo tributário. Pros infernos, tributaristas. Todos eles. Advogados, contadores, economistas, financistas, agiotas... Para que preciso aprender processo tributário, trabalhista ou civil? Vou ser penalista! Vou colocar bandido na cadeia!

O pai reconheceu a voz. Explicado por que se despedia cedo nos fins de semana; a filha nada reclamava e se recolhia. E a mãe pensando na filha recatada! O sangue fervia-lhe quando ele retomou o discurso:

- Onde estão minhas cuecas? Abriu a tampa do baú: - Perfeitas. Passadas do jeito que gosto. Vou tomar um banho e depois... Ligou o chuveiro.

O pai passeou pelo quarto tentando descobrir esconderijos de eventuais pertences do namorado da filha. Abriu o baú e encontrou cuecas, meias, uma calça jeans, duas bermudas e três camisetas. Compreendia por que a filha passava mais tempo do que o necessário em alguns banhos. Sentou-se novamente na cama, abriu um chocolate (a filha deixava chocolates na mesa de cabeceira) e viu quando o rapaz, vestindo cueca verde-azulada, continuou:

- Pensei que a gente poderia viajar no fim de semana para Maringá. Festival de teatro por uma semana. Podemos assistir duas peças e depois caminhar, ir ao cinema, fazer amor. Estou louco para ir. Acho que você também vai querer. A única coisa que precisamos saber é se seu pai vai deixar...

Num suave e irônico tom, o pai indagou:

- O que você acha que vou dizer?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 10 de setembro de 2009.