DULCÍSSIMOS DIAS

O canavial anunciava que era a hora de cortar a cana-de-açúcar que já estava madura e devia ser levada ao engenho para ser moída. Já estávamos na casa dos meus avós Picurra e Branca e nos juntávamos aos tios e tias às voltas com a moagem que duraria uns dois dias.

Ouvi que fariam melado, rapadura de mamão e de amendoim e também açúcar preto – hoje o caro açúcar mascavo.

Eu deveria ter oito anos e era uma farra para mim e minhas irmãs que montaríamos o cavalo quando este puxasse o engenho moendo a cana. E também comeríamos a puxa-puxa que fariam para saber o ponto de enformar (assim eles diziam) a rapadura.

O dia da moagem começava bem de madrugadinha, assim que os galos começavam a cantar. Os adultos se levantavam, tomavam chimarrão enquanto as mulheres preparavam o quebra-torto, geralmente arroz-carreteiro e mandioca, algumas vezes tinha ovo frito. Meu pai batia gemada, e o açúcar usado era o preto que fora feito na moagem anterior. Raramente se tinha açúcar branco em casa. E quando se tinha era guardado para adoçar o café para as visitas, quando estas chegassem.

A moenda limpa e o cavalo pronto com uma guria já montada começava a moagem. O caldo verde, dulcíssimo, ia escorrendo pela moenda, e o experimentávamos em nossos copinhos de lata - esses de milho verde, massa de tomate ou ervilha.

E a cana ia sendo espremida fazendo um ruído suave e o caldo verde e cheiroso escorria agora no balde de alumínio, para ser levado aos grandes tachos que já estavam no fogo.

Meu pai atiçava o fogo e punha mais lenha no forno – as brasas vermelhinhas – e o enorme tacho ardendo sobre as chamas recebia os balde de garapa.

Quando a fervura levantava - assim dizia papai – ele pegava a imensa escumadeira e começava a escumação. A escuma era colocada em um tambor para ser levada ao cocho dos porcos no chiqueirinho.

E o caldo no tacho ia apurando, aos poucos, até virar melado. Meu pai sabia a hora de retirar o tacho do fogo – dizia que o melado estava no ponto. E pronto.

Quando desejavam fazer rapadura de amendoim ou de mamão o tacho continuava no fogo e dentro dele era jogado o amendoim torrado e com pele; ou o mamão verde e ralado com casca e tudo. Que delícia que ficava! O cheiro irresistível.

Os homens se revezavam em volta do tacho quente. Quem mexia o tacho com a grande pá de madeira derramava pequenas porções do caldo espesso e quentíssimo dentro de uma tigela com água fria procurando o ponto – o que chamavam de puxa-puxa. E nós provávamos também a puxa-puxa. Havia o momento ideal de se tirar o tacho do fogo e bater rapidamente a massa quente. Enquanto isso, outros iam armando as formas de madeira que ficavam guardadas na parte de cima do galpão. Eu ficava encantada com as formas, que se constituíam de pedaços de madeira, trabalhados artisticamente em sentido longitudinal e montados pareciam cerquinhas. Ali era despejada a massa quente e cheirosa para tornar-se rapadura.

Estava pronta a rapadura. Esperava-se algum tempo, que era contado sem relógio e começavam a desenformar as rapaduras; nenhuma se quebrava.

E as delícias continuavam. Sobre as formas restavam pequenas partes de doce que fora derramado no momento de colocar a massa nas formas e nós continuávamos comendo as partezinhas que restavam sobre a mesa, como aquelas que ficam grudadas nas formas de bolo depois de assado e retirado da forma.

Tudo era doce. Nesse tempo da minha infância tudo era doce. Muito doce. E eu... Eu era muito feliz e não tinha idéia do tamanho da minha doce felicidade.

Vicentina Vasques
Enviado por Vicentina Vasques em 13/09/2009
Código do texto: T1808773
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