O cronista, a cidade e a Conceição

Caminhar pela cidade é um verdadeiro exercício de observação para aqueles que, como eu, apreciam investigar os detalhes do que os outros chamam de corriqueiro. Não diria que eu sou um flâneur, pois me falta tempo e sofisticação, mas sinto um imenso prazer em perscrutar a vida alheia e transeunte. E pior, comentar depois. Sou um fofoqueiro letrado para resumir.

A própria cidade é um personagem, dos mais ricos por sinal. Cada cidade é dotada de uma personalidade ímpar; suas ruas, becos e avenidas são as artérias por onde correm sonhos e fantasias; cada prédio, casa e apartamento são armários onde se guardam segredos e se revelam mistérios; suas lojas, restaurantes e quiosques consomem e são consumidos por sabores e desejos materialistas.

Mas o que realmente me atrai nas cidades não é a arquitetura caótica, o concreto ríspido, o céu cinzento embolorando o azul de outrora, o qual teima em se mostrar entre frestas das janelas de alumínio. O que me chama a atenção, convidando meus sentidos a perceber seus movimentos e suas histórias, são as pessoas. Quantos causos e casos cada gente que caminha alvoroçada pelas calçadas não têm a serem narrados ou imaginados, sondados ou inventados? Isso sim, aguça minha veia de contador de estórias.

Lembro-me, a título de exemplo, da Conceição (nome fictício usado para proteger a ignorância do autor sobre o nome verdadeiro da mulher em questão), caminhando a passos curtos pela Rua Bueno Aires, vestida numa calça jeans apertada, ancas malevolentes - beirando o vulgar, a pele morena contrastando com os cabelos tingidos de um ruivo acobreado, olhar distante, fixo num horizonte imaginário, demonstrava uma segurança própria ás mulheres determinadas. Como estava indo na mesma direção dela, me peguei flertando com as possibilidades do que ela poderia ser e para onde estaria se dirigindo, quem era, quais seus problemas, seus desejos, o que estava pensando naquele momento em particular, enfim, queria saber tudo sobre ela.

Assim, criei uma Conceição secretária de um pequeno escritório de advocacia, destes que trabalham com litígios menores, como tirar multas de trânsito. Seu chefe seria um advogado pançudo de meia idade, cabelos desgrenhados, mulherengo, que a contratou pelos seus atributos femininos mais do que pelas suas qualidades como organizadora. Teria uma filha pequena e seria separada. Acordaria todos os dias bem cedo para preparar o café da menina e a levaria para escola pública do bairro, almoçaria no mesmo self-service de sempre e a noite voltaria para casa, na periferia, em um ônibus lotado, tentando desviar-se dos homens mais atrevidos que tentariam tirar-lhe uma casquinha.

Pronto, minha Conceição estava terminada, tal como uma obra prima; dotei-lhe de vida e fiquei admirando-a, tal qual criador enamora-se de sua criatura.

Estava lá, extasiado, quando então, de repente, Conceição que estava há uns poucos metros, virou-se bruscamente à esquerda e entrou num prédio. Parei para vê-la pela última vez, quando então percebi que ela havia entrado num famoso estabelecimento de entretenimento adulto localizado justamente na Buenos Aires. Confesso que fiquei chocado, não pela profissão da Conceição ser a mais antiga do mundo, conforme espalham por aí, mas pelo fato da minha imaginação não superar a vida como ela é. Afinal, a Conceição de carne e osso era muito mais interessante que a minha Conceição fictícia.

Pelo menos eu entendi porque o advogado a contratara.

CEVDM

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