...BREVE ADORMECER NO INÍCIO DA NOITE...

"...parou a ventania.

as estrelas, dormentes, fatigadas,

cerram, à luz do dia,

as misteriosas pálpebras doiradas..."

GUERRA JUNQUEIRO

Olhei para o livro que escrevo com os olhos e percebi a voz abafada pelo sem número de carros que cortam a minha frente. Os postes pressentem a escuridão e acendem em plena tarde. Os pássaros brincam de se atirar contra o vento, enquanto eu evito me atirar contra o tempo. A TV não passa de um quadro negro sem nenhuma cor, e os livros estão no lugar dos medicamentos para a dor. Logo as estrelas estarão dispersas pelo céu, sendo alvo de sonhadores que nunca desistem. A poeira de casa não vai para baixo do tapete, fica lá em cima das prateleiras até que alguém faça o simples ato de passar um pano úmido, para depois fingir surpresa com toda a sujeira retirada. A lua brilha atrás do descaso das nuvens que invadem a noite, e lentamente vai encontrando espaço para se fazer perceber. Minhas palavras deveriam ser assim, lentas, para que não houvesse tempo de desaparecerem antes de chegar ao papel. A sala se ilumina e minhas pálpebras cansadas fazem do sofá um abismo. Eu me atiro antes que os sons despertem a minha alma.