ÚLTIMA FREADA

A BR sempre mais apressada escapava sob as rodas de milhares de carros e estes estavam com mais pressa ainda. Já eram quase oito horas. Matheus dirigia seu carro l.6, usado mas veloz, com destino ao seu trabalho numa empresa na cidade vizinha. Faltavam poucos quilômetros para chegar ao pátio do prédio onde trabalhava. Por consciência, tinha, além das tarefas, um horário a cumprir. Todos os dias sua luta pela sobrevivência levava-o a enfrentar os perigos do asfalto, em franco conflito com o relógio. Mas assim mesmo considerava-se um homem feliz. Quantos dos seus amigos e conhecidos não estavam no mercado formal de trabalho!... e atocaiavam-nos esses e outros perigos, ainda mais severos e injustos no mercado informal. E estes últimos nunca tiveram quaisquer reconhecimentos das autoridades. Por isso considerava-se um homem feliz,... e corria de encontro à repartição, que o esperava no horário certo.

Enquanto seu carro rodava veloz, quase sempre desrespeitando a velocidade máxima permitida em lei, era ultrapassado por colegas de estrada, ainda mais afoitos, talvez sofrendo a mesma angústia da corrida do relógio. Ainda que seu carro se impulsionasse para frente pela força do motor, seu pensamento voava e sentido contrário; ia aninhar-se no seio da família, e voando, entrava em uma casa modesta de um bairro qualquer da cidade, de encontro à esposa e um casal de filhos, ainda crianças, para os quais buscava sustento e conforto e saúde e proteção.

Nesta vazante, num determinado momento de bobeira, pesou estar seguro aproveitando o vácuo da ultrapassagem que fazia o outro carro, ao qual perseguia. Sua visibilidade não era grande. A carreta que ultrapassavam carregava as riquezas brasileiras. A faixa não era contínua e... aproveitou sua chance. O carro pequeno sumiu do seu visual. Em seu lugar viu crescer, vertiginosamente, o perfil de um caminhão desgovernado. Seu último reflexo: UMA FREADA VIOLENTA.

Os Anjos do Asfalto atenderam, prestos, a mais um acidente. Retiraram das retorcidas ferragens os restos mortais de um se humano. O IML os acolheu e reconstituiu para reconhecimento do corpo pelos familiares.

Apagou-se uma estrela na constelação dos homens; o trabalho perdeu um técnico; a vida emudeceu mais uma festa; a família privou-se – para sempre – do esposo e do pai.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 28/09/2009
Código do texto: T1835756
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