FIM DO SONHO DE PAPAI NOEL

FIM DO SONHO DE PAPAI NOEL

Levanto da cama bem cedinho. Quase que saio de dentro do velho, mas limpo, colchão de palha de milho, rasgada em fiapos bem fininhos. Desembaraço-me da grossa coberta de penas de pato; ponho os pés sobre o assoalho de madeira e sinto a gostosa sensação de encher os pulmões com o ar puro da roça. Saio do quarto de pés descalços e dirijo-me à porta da casa. Respiro profundamente o ar inconfundível da manhã. No aroma que impregna a paisagem interiorana, meu olfato distingue algo novo – o cheiro do Natal.. Sim, porque até na natureza dilui-se o espírito natalino. Espécies de pássaros, não vistas ou ouvidas em outras épocas do ano, até então silenciosas, cantam como se tocassem sininhos – “tilim, tilim” – acusando a proximidade das festas natalinas. Agora os vejo saltitantes nas árvores em torno da casa.

Mas, com essas maravilhas, só vistas e sentidas no interior, eu me distraí! Esqueci-me de que tenho obrigações matutinas. Segundo o meu pai, quando um menino não cumpre com suas obrigações, o Papai Noel não passa na casa da gente na noite de Natal.

Saio correndo e começo a dar milho aos porcos; ajudo a mãe a tratar a vaca que ela vai ordenhar; corro para soltar os boizinhos que saem do curral cabriolando sua tenra juventude pasto afora; dou milho debulhado aos cavalos e também os solto no potreiro. Isso tudo, na minha ideia, não o faço de graça. Um só pensamento fixo e central domina-me: o que será que o Papai Noel vai trazer para mim neste ano?

Acabo de completar nove anos. Já ganhei mil e um brinquedos. O que mais me enfeitiçou foi um coelho de veludo, branquinho, quase tamanho natural, recheado de areia. Foi o mais querido brinquedo ganho até então. Concentrado nos meus brinquedos, não vi que a mãe já tirara o leite da “boneca” e dirigia-se à cozinha para coar e ferver o leitinho da família.

Distraído em meus pensamentos, tornei a entrar no paiol. Reparei no montão de milho em espigas, ocupando a metade do vasto recinto, que papai colhera naquele ano; nas bolsas de arroz em casca e outros cereais, empilhadas; no trigo que, naquela época, era plantado e colhido só para consumo próprio. A caixa que continha o feijão daquela safra, guardado para o consumo mais me atraiu a atenção. Feijão reluzente e bem graúdo. Gostoso um caldinho de feijão! Absorvido nessas ideias, de como Deus fora bondoso mandando a chuva no tempo certo e tempo seco na mesma hora certa da colheita, e, achando nisso um brinquedo divertido, passava ao lado da caixa que continha o feijão, afundando a mão espalmada na caixa de grãos daquele cereal, forcei passagem com os dedos abertos. Senti como estava bem conservado e fresquinho no fundo da caixa. E isso dava-me prazer.

De súbito fiquei tenso. Meus dedos chocaram-se com um objeto sólido. Muito curioso, forcei a mão em concha e logo vi aparecer na superfície uma pombinha branca, feita de madeira, de lindas, amplas e coloridas asas, pousada sobre uma carretinha de rodas, também de madeira, com um comprido cabo para empurrar manualmente. Repus o objeto na caixa cobrindo-o novamente de feijão.

Passados mais alguns dias, chegou, finalmente, a tão sonhada noite de natal.E era tradição na casa do meu pai as crianças irem brincar num gramado ali perto de casa, à luz do luar, pois já achava-se presente na imediações, segundo ele, o Papai Noel que, na hora certa, ia chamar a gurizada para lhes falar e entregar os presentes merecidos. Cumpriu-se a tradição. Ansiosos, mas tremendamente inibidos e assustados, esperamos nossos presentes. Após o sermão de praxe, estes foram distribuídos. Silvinho recebeu o seu. A mão recebeu. Até o pai também recebeu. A Lurdinha recebeu sua bruxa de pano, que apertou freneticamente contra o peito. Uma lágrima de felicidade rolou sobre a face da minha irmãzinha mais nova. As outras duas irmãs mais velhas também foram presenteadas. Por fim chegou a minha vez. Com um olhar significativo, não de cumplicidade, mas para provocar minha admiração, o homem de barba branca e de voz grave que parecia a do nosso vizinho, entregou-me uma pombinha branca, feita e madeira, de lindas, amplas e coloridas asas. A mesma que encontrara escondida na caixa de feijão dias antes. Recebi-a, satisfeito e orgulhoso. Nada disse e nem deixei transparecer.

Após a festinha caseira, empoleiramo-nos na carroça puxada por dois cavalos, emperiquitados com as roupas novas, que também ganhamos, com os bolsos a transbordar de chocolates e doces e um enorme sorriso no rosto de criança. Com o papai na boleia fustigando os animais, vencemos os doze quilômetros que nos separavam da cidade, onde íamos todos os anos assistir a missa no noite de natal.

Chegando à igreja matriz de Não Me Toque, com ares de donos do mundo em nossa roupa novinha em folha, a família ocupou um banco inteirinho da velha e bonita igreja.

Desse Natal em diante fingi de nada saber. Todos os anos eu vasculhava todos os cantos e caixas existentes na propriedade. Antecipadamente já conhecia todos os presentes de todos os membros da família.

É pena, pena mesmo! Meu sonho infantil, o Papai Noel de mentirinha da minha infância, evaporou-se e, para mim, diluiu-se no ar como se fora de cinzas expostas ao vento, essa tradição milenar.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 29/09/2009
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