Uma longa noite de vigília
As pessoas deviam morrer apenas ao romper da aurora, pois assim não teríamos as longas e intermináveis noites de vigília. Morrer ao nascer do sol e ser enterrado em seu declínio, tornaria tudo mais fácil. A noite por si só é a morte do dia.
Foi uma longa noite ao lado do leito mortuário dela, cercado de flores e velas. No velório poucas pessoas que a conheciam, quase todos colegas de trabalho. Familiares nenhum, pois sempre disse que não os tinha. Era uma pessoa dócil, porém, muito pouco comunicativa, excêntrica e no seu rosto havia um permanente ríctus de sofrimento. Ia sempre ao médico, mas nunca comentava a respeito de sua saúde ou doença, se é que realmente existia ou era produto de sua mente ou de seu caráter introvertido. Todos na repartição a respeitavam pela competência e por estar sempre pronta para ajudar a quem precisasse.
Um dia não apareceu no escritório e todos ficaram preocupados, pois nunca havia faltado ao trabalho. No final do dia, sem notícias, o chefe mandou um funcionário à sua casa. Ele tocou a campainha várias vezes, mas ninguém atendeu. Insistiu batendo na porta e nada. Chamou o zelador do prédio que disse não tela visto sair naquele dia. Assustado, foi buscar a chave mestra, mas antes de abrir a porta chamou o guarda de plantão na rua. O zelador abriu a porta e entrou juntamente com o guarda e o funcionário. A sala, inteiramente em ordem, no quarto a cama não havia sido desfeita e ninguém ali. Seguiram para outro cômodo que servia de escritório e assustados a viram debruçada na escrivaninha com o braço direito pendido na direção de uma folha de papel no chão, com o seguinte texto:
"Do amor a vida só me deu apenas migalhas
Como as que são jogadas para um cão faminto
Que perambula triste nas ruas
Sem afeto, sem lar, sem dono
Assim foi minha vida, sem amor, sem carinho
Sem ao menos um amigo
Que meus lamentos escutasse
Só a dor foi minha companheira
E amanhã não será outro dia