Fé escatológica

_ Querida? Querida? Acorda.

_ Heim, como, que foi, quem morreu?

_ Ninguém morreu, sabe o que é? Acordei assim, no meio da noite, com um peso no coração, um sei-lá-o-que me atormentando o peito...

_ Sandoval, você acendeu as velas de anjo de guarda? Acendeu as velas na casinha de exu? Olha lá homem, não pode vacilar com o além, vai que você tá com encosto? Quer que eu ligue para aquele programa do pastor? É agora de madrugada. O pastor Cleverson, lá do templo que eu estou indo, disse que o homem é poderoso, exorciza pela televisão, coisa de doido.

_ Ai mulher, já vem você com estas superstições, encosto o que! E da três batidinhas na mesinha de cabeceira.

_ Sandoval, só porque você é católico apostólico italiano...

_ Romano.

_ Não fica na Itália? Então. Só porque você é católico apostólico romano, acha que minha fé é coisa de ignorante. Bem que a cartomante que eu fui com a Matilde tinha me alertado sobre esse seu jeito besta de tratar o Deus dos outros.

_ Deus dos outros? Para de bobagem. Deus é um só, o seu e o meu. Jesus, que Alá nos proteja dessas suas idéias.

_ Já sei Sandoval, tenta aquela técnica de relaxamento que nos aprendemos no workshop do mestre sufi Satiranabanda. Tá lembrado, fomos mês passado.

_ É, não custa nada né.

Sandoval, após um esforço brutal para acomodar sua barriga entre o tórax e as coxas, sentou-se na posição de flor de lótus - na verdade, de tão esparramado, lembrava mais um ramalhete de batata, sendo o Sandoval a própria. Após alguns minutos de meditação profunda, irrompeu o silêncio da madrugada um som estrondoso vindo do íntimo de Sandoval. Estupefata e com cara de nojo a mulher indagou:

_ Que isso Sandoval?

_ Exorcizei a feijoada.

Nem precisou do descarrego.

CEVDM