AS ENCHENTES DO SANTA CRUZ

Pouco antes do almoço o sol se escondeu e espessas negras nuvens cobriram o céu. A chuva começara – um pequeno aguaceiro – disse o meu pai; entretanto, foi aumentando mais e mais até inundar o galinheiro, o chiqueiro dos porcos e o cercado em que ficavam os bezerrinhos recém-nascidos. Ficamos dentro de casa sem poder sair para brincar.

A tarde já estava pela metade e a minha mãe fritou bolinhos de chuva que comemos com leite e café; nesse período uma grossa garoa ainda caía sobre a grama lá fora. Da janela da cozinha dava para ver o rio e nossos pais comentavam que a água estava subindo.

Então, a chuva parou e já lá fora meu pai nos chamou para ver o Santa Cruz transbordando. Nunca havíamos visto tanta água em nossas vidas e imaginamos que assim era o mar. Desse jeito. Era muita água barrenta trazendo grossos troncos de árvores com raiz e tudo, arrancando a grama das margens e trazendo até um cachorro morto boiando.

O rio em que tomáramos banho pela manhã, agora virara um caudaloso rio de muitas águas. Sentíamos medo. E se o rio chegasse até a nossa casa? Meu o pai nos confortava e dizia que chovera muito na cabeceira e que por isso houve a enchente. Mas isso não aquietava a Arlete que chorava desesperadamente e dizia: “Papai, vamos embora daqui! Vamos sair para o campo!” E mostrava a saída da humilde fazendinha em que vivíamos.

O choro da Arlete durou até as águas irem baixando ao ponto de aparecer a pedrona em que subíamos para saltar para dentro do rio durante nossos banhos matutinos. E aos poucos foram aparecendo as areias brancas e ricas em calcário e logo poderíamos construir outras vezes os nossos castelinhos de areia. O pé de marmelo, de maravilhosos frutos doces, que ficava do outro lado do rio, aparecia deitado e com a folhagem retorcida e aparentemente sem nenhum fruto.

E ali diante daquela imensidão de águas turvas, perguntávamos ao meu pai para aonde foram os peixes, as rãs e as tartarugas – nossos companheiros da beira do Santa Cruz. Ele sorria e dizia que os bichos voltariam nos próximos dias e que as plantas rasteiras e as árvores se levantariam e dariam frutos outras vezes.

Ia anoitecendo quando as águas voltaram ao seu percurso normal; o cheiro de barro já não nos incomodava tanto e tudo voltava ao seu curso natural. A cacimba de água doce e fresca – em que meu pai se dessedentava nas tardes quentes quando voltava da roça – continuava submersa na enchente, mas ele dizia que logo ela apareceria de novo.

Depois desse dia chuvoso, muitas outras enchentes vieram e passaram por nossa casa; no entanto, assim como vieram, elas se foram. Aprendi que águas barrentas e malcheirosas vêm e vão embora.

Vicentina Vasques
Enviado por Vicentina Vasques em 17/10/2009
Código do texto: T1872051
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