No tempo da palmatória

Às vezes tento não ser saudosista, mas a verdade é que os tempos mudaram; com a evolução da tecnologia e a implantação de tantas leis as coisas mudaram e, muitas não foram pra melhor. Saudades tenho do tempo em que os pais tinham autoridade sobre os filhos. Hoje dizem que uma palmada traz traumas, mas no tempo em que os pais podiam educar os seus filhos, corrigindo-os com firmeza, era tudo diferente. No tempo da palmatória não havia tantos bandidos.

Quando os pais ensinavam que se deve respeito aos mais velhos e que pai e mãe são autoridades no lar; quando os avós eram visto como pai e mãe duas vezes, por tanto o respeito era em dobro; nesse tempo a palavra de um homem tinha o valor de um documento assinado; as filhas não disputavam homens com a mãe; netos não estupravam as avós; filhos não espancavam pai e mãe; os professores não eram espancados, nem assassinados por seus alunos em sala de aula; escolas não eram destruídas por vândalos. E não havia a necessidade de tantas delegacias.

Que me desculpem os criadores dessas tantas leis, mas como não sentir saudades?... Quantas lembranças tenho guardadas, lembranças que às vezes me fazem vibrar de saudades e às vezes de tristeza que chega a doer no meu peito. São lembranças dos tempos passados que infelizmente não o terei mais! Tempo em que no final da tarde, mamãe, meus irmãos e eu podíamos sentar na porta de nossa casa sem medo de ser assaltados, ou de ter a nossa casa invadida por um fugitivo da polícia que nos fizesse de refém. E vez ou outra aparecia um vizinho pra prosear, contar estórias de assombração; lobisomem; mula sem cabeça; curupira e outras tantas...

Mamãe falando de modo engraçado: - Fica de coca aí minina, dá o tamburete pra cumade acentar!... – Então eu me levantava, pedia a benção pra comadre de minha mãe, que nem sempre era comadre de verdade, era só uma forma de tratar, entregava-lhe o tamborete; e ficava de cócoras em um canto qualquer, ou sentava-me no chão e, ficava a ouvir a prosa; não falava nada, pois era só uma menina e como minha mãe falava: - criança num1 se mete na cunvessa2 dos mais veios3. - E ali se falava do vestido incarnado4 da fia5 da vizinha; do pau-d’arco do camim6 da fonte que estava cheio de fulô7; dos bacurim8 que a porca pariu; do fie9 da Madalena que não soube apiar10 do cavalo e caiu; do quanto era feia criança suvina11 e gurejona12; do fulano que ia trabaiar13 na sua roça no dia seguinte; do sicrano que era enredeiro14; do beltrano que havia plantado um pé de tamarina15; na frente do sumitero16; e até do curador que havia sido chamado às pressas por que o cumpade17 do seu Dito, aquele dono da garapera18, tinha sido mordido por uma cobra cascavel.

E assim passava-se o tempo de forma suave tranqüila onde amigos eram como jóias e, a vida era valorizada.

Às vezes em pensamento vejo mamãe cantando, com o jeito toda prosa; nosso cachorro, Kangussú; a cabra mocha e todos aqueles bichinhos que ficavam a nossa volta. Sei que com o tempo as coisas mudam, mas não precisava mudar tanto, eu só queria ainda poder contar histórias, sentada a minha porta.

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1 – Não; 2 – Conversa; 3 – Velhos; 4 – Vermelho; 5 – Filha; 6 – Caminho; 7 – Flor; 8 – Leitão; 9 – Filho; 10 – Descer; 11 – Avaro; 12 – Espião; 13 – Trabalhar; 14 – Fofoqueiro; 15 – Tamarindo; 16 – Cemitério; 17 – Compadre; 18 – Local onde se tirava o caldo da cana.

Cícera Maria
Enviado por Cícera Maria em 18/10/2009
Código do texto: T1874049
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