Nada Acontece por Acaso

Nada Acontece por Acaso

Faz muito tempo! Vivíamos aquela fase, na qual somos mais que garoto e menos do que rapaz, entre a puberdade e a adolescência. Nessa fase da vida que poderíamos batizá-la de “Pubercência, assisti ao filme “A Felicidade não se Compra”.

Naquela fase, excluindo os castigos e os sonhos, dificilmente fazíamos algo sozinhos.

Procurava, o que naquela época não existia, filmes para assistir no apartamento, pois o fim de semana fora anunciado chuvoso.

Numa dessas coincidências improváveis, encontro Gabriel, que fizera parte do grupo que assistiu ao filme.

Interrompemos nossas buscas pelas prateleiras da locadora e, influenciados pelo ambiente e pela alegria do reencontro, passamos a falar sobre o clássico “A Felicidade não se Compra”

Nessa fase, apesar de sonharmos mais do que pensarmos, esse filme marcou-nos por expor uma reflexão sobre a importância de nossas vidas.

A reflexão consistia em ponderar como seria a história de um grupo de indivíduos, se um deles não tivesse existido.

Com este exercício percebemos a seqüência de fatos que não teriam ocorrido se um dos indivíduos do grupo não tivesse nascido.

A dinâmica do filme consiste em mostrar ao elemento do grupo desesperado e com idéias de suicídio os fatos, que não teriam ocorrido se não tivesse existido. Além disso, projeta o que poderia ocorrer no futuro com sua ausência.

Caso não tivesse nascido, ou colocasse fim a sua vida, a cadeia de relações e fatos seria alterada e muitos de seus familiares e amigos sofreriam prejuízos materiais e morais.

Dentro dessa visão, seja qual for o grupo, familiar, de trabalho, amigos ou companheiros se refletirmos temos muito que agradecer aqueles que cruzaram nossos caminhos, pois, certamente, nossas vidas foram melhores devido a essas inter-relações. Até aqueles que os reconhecemos como “espíritos de porco”, “malas sem alça” e outros adjetivos similares, nos fizeram crescer.

Naquela época, recordou Gabriel, residíamos numa rua de terra batida. Quando fazia sol, poeira e quando, chuva, lama.

Gabriel convidou-me para tomar um café e escutar um caso, que ilustraria muito bem a veracidade do enredo de “A Felicidade não se Compra”

Iniciou seu “causo” perguntando: lembras do Manoel, que morava vizinho àquela oficina que ficava em frente de minha casa?

Imediatamente após responder que recordava, continuou:

Manoel era criado por uma senhora de cabelos grisalhos que chamávamos de tia. Por ser mais novo e, também, pela tia ser muito preocupada com sua educação, proibia sua mistura conosco, moleques da rua.

Emporcalhávamos nossos calções (hoje shorts) jogando peladas, ou peteca (bola de gude), ou peões, empinando papagaios (pipas) e rolando-nos em brigas, assistidas pelo resto da molecada e por passantes curiosos. Platéia sempre aos gritos: porrada, porrada....

Enquanto isso, numa janela em frente ao palco onde era encenada a vida de moleque, Manoel, com toda sua timidez, transparecia com seus olhos graúdos a vontade de fazer parte daquela peça. Transparecia o desejo de trocar o papel de espectador para o de ator, ou seja, de menino mimado para moleque travesso.

Apesar de moleque, guardei a imagem da repressão maternal pelo excesso de zelo. Além disso, cobrava-me por não ter tentado convencer a tia para permitir que Manoel deixasse a segurança da janela e saísse para a insegurança da rua.

Interrompeu por segundos para um gole de café e, com certa excitação, continuou sua narrativa.

Mudamos para uma rua calçada com paralelepípedos. Depois peguei um Ita no Norte e outros caminhos, outros grupos, mas aqueles tempos transformaram-se em fortes e ternas lembranças.

Mais de trinta anos passados e o Presidente da empresa onde trabalho determinou a elaboração de um diagnóstico sobre uma das áreas da empresa e indicou-me para fazê-lo. Determinou, ainda, um de seus Assessores para representá-lo no acompanhamento do trabalho.

Graças a inteligência, firmeza e simplicidade do Assessor, bem como a eficácia da Secretária Executiva do Presidente o trabalho foi prestigiado e as portas da Presidência abertas.

Certo dia, após reunião quinzenal, nas quais era acompanhada a programação e requisitado meios para a continuidade dos trabalhos, ao sair da sala e transitar pela Sala de Espera, fui invadido por dois olhos graúdos, assustados e por um rosto familiar.

Dei mais dois ou três passos e voltei. Parei e pedi desculpas ao protagonista daquela invasão, pois precisava dizer-lhe, que achava que o havia conhecido há muito tempo atrás.

Interrompeu sua exposição, para perguntar-me se adivinhava quem era.

Curioso, afirmei-lhe não ter a menor idéia e pedi que continuasse. Então Gabriel narrou na forma espontânea de sua abordagem.

Dei as coordenadas: a tia de cabelos lisos e grisalhos, a rua de terra batida, Belém e veio a confirmação de que, de fato, tratava-se daquele garoto emoldurado pela janela em frente ao palco da molecada no passado, no presente ator da Companhia, como Engenheiro da Manutenção, mas demissionário.

Semelhante a um pesquisador que descobre a cura de uma grave doença, Gabriel exclamou: Era o Manoel maninho pai d’égua.

Levantou-se apanhou um copo d’água mineral e adotando certo ar de professor, avisou-me, agora irás entender o porquê de afirmar-te que essa história ilustra o enredo do filme “ A Felicidade não se Compra”...

Num impulso, como mobilizado pela antiga dívida de não ter conseguido trazer Manoel para o nosso grupo e fazer o curso de moleque, voltei á sala do Assessor. Disse-lhe que não o conhecia profissionalmente, mas que tinha certeza que sua experiência poderia ser aproveitada em outra área da empresa, inclusive na Presidência.

Desta vez tive êxito. Da sala de espera, como engenheiro demissionário da área de Manutenção, para a sala do Assessor, como Assessor da Presidência.

Voltamos às prateleiras da locadora e, felizmente, havia mais de uma cópia daquele filme que iríamos, agora, assistir cada um no seu apartamento.

Despedimo-nos, trocamos nossos números de telefone e já nos comprometemos de nos encontrar, agora com a presença do Manoel para que, também pudesse rever o Assessor do Presidente.

Levei mais algum tempo procurando mais dois filmes e no caminho para casa recordei que toda a molecada daquele grupo, da rua de terra batida, era solidária à tristeza tímida expressa pelos olhos graúdos do Manoel.

Não resisti, peguei o celular, liguei para o Gabriel e exclamei: obrigado!

Perguntou-me o motivo e, aí lhe confessei: “proibi meu filho de andar de skate e carrinho de rolimã com a molecada da vizinhança. Vou rever essa repressão paternal”. Até breve.

Nada acontece por acaso, nenhuma folha cai, que não seja causal.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 01/11/2009
Código do texto: T1899916
Classificação de conteúdo: seguro