CALIBRE 38

Li certa vez que a audição, sob o aspecto social, é mais importante na velhice do que a visão. Nunca havia pensado nisso, pois sempre a gente ouviu dizer que a visão é o mais importante órgão dos sentidos.

O autor, do qual não me lembro nada, alegou no seu trabalho que a pessoa velha se relaciona melhor com outras da sua idade ou com as mais jovens quando ele escuta e pode participar dos eventos. Quando ele não ouve, começa a “encher o saco” de todo mundo, pedindo para repetir, entendo mal e misturando as estações e se deseja participar de uma rodinha de papo, logo percebe que está atrapalhando e se retira, enfia num canto e se isola. Isto antecipa ou piora seu estado emocional e a pessoa tende a entrar em isolamento e complicar a sua depressão, achado freqüente nas pessoas idosas.

Como na minha família todos os meus avós e pais viveram muitos anos – minha mãe ainda é viva – pude parar para pensar e assim concordar com o autor das observações. Meu avô gostava muito de jogar cartas – marimbo – ou víspora. Ele sofreu um acidente serio, teve fratura de crânio e perdeu a audição da sua orelha que era a melhor. Da outra, segundo disse, já não ouvia bem desde criança. Pô! Jogar com vovô não era possível, pois quase todas as pedras cantadas sistematicamente pedia para repetir; marcava errado no cartão, enfim, era dose, um auê sem igual.

Cada vez mais ele notava que os parceiros não estavam com nenhuma disposição de jogar com ele. Alguém pode questionar: se ele fosse cego não poderia jogar de maneira nenhuma! Correto. Mas não jogar víspora nunca na vida não o faria sentir falta daquilo ou mesmo perceber que não era um parceiro benquisto. Acho que a depressão seria menor.

Hoje a gente percebe que ele sempre foi um cara deprimido e pessimista, como ele próprio se referia. Nunca pensava no lado bom das coisas e teimava em achar que tudo daria errado para ele. Viveu mais de noventa anos, mas não achava que estava bom demais e queria por queria ficar bom da sua coluna depois dos noventa anos. A radiografia da coluna do vovô não era de uma coluna; era de um cabide vertical tantos eram os bicos de papagaio e a imponência do seu tamanho. Já falei sobre isso aqui.

Com o passar dos anos, as coisas foram piorando, apesar da vontade contrária do velho Jão. Houve mesmo uma época que ele quase não batia um papo normal, sempre reclamando, queixoso e num belo dia, ele entabulou um papo desses com meu irmão caçula, o Cal e não deu outra: depois de muito reclamar, disse para o Cal que se ele tivesse um revólver daria um tiro na cabeça. Cal não tinha arma nenhuma, mas quis testar se o velho estava mesmo a fim de morrer ou era papo de criança mimada.

- Eu tenho um e empresto pro senhor. Mas, olhe bem, preste atenção! Deixe tudo escrito que foi o senhor que quis morrer e que o revólver é meu, senão ainda vão querer herdar minha arma. Tem mais uma coisa: faça isto antes e pense bem, porque o senhor não vai ter possibilidade de se arrepender depois. É pá e terra!

Vovô parou um pouco. Passou a mão pelos cabelos ralos e escassos. Fumou um cigarro que por vontade de um dos seus filhos deveria ter parado porque o estava prejudicando. Puxou uma baita tragada, passou o dedo mindinho na cinza jogando-a ao chão como sempre fazia e perguntou ao Cal:

- Qual o calibre do seu revólver?

- Trinta e oito. Carga dupla!

- Ah! Esse eu não quero não! Você não tem nenhum vinte e dois? Trinta e oito faz uma barulheira danada e deve dar uma zoeira nos ouvidos da gente, não é?

E começou a rir.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 03/11/2009
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