PORTEIRA VELHA

Atravessada no caminho desde sempre, a porteira separa dois mundos.

Lá fora a vida, a liberdade.

Cá dentro a solidão, o desespero, o nada fazer.

Rangendo nos gonzos necessitados do óleo de licurí, todas as vezes que alguém passa é um lamento, um tanto de espera, novo lamento e... pá... a batida característica no mourão, grosso, seco, irremovível.

Superior ao tempo, ao fogo, ao cupim.

A porteira feita de madeira de lei resistiu às investidas do sol, às intempéries, ao orvalho das noites, aos dias de tempestade.

A gameleira sua companheira de tantos anos, fora atingida por um raio. Morreu em pé (como devem morrer os heróis) em noite pesada de frio cortante.

As nuvens pejadas, como peitos de vacas leiteiras, ameaçaram por muito tempo desabar sobre os viventes.

A chuva que começou fininha, tangendo as galinhas para perto do fogão, de repente transformou-se num temporal.

Raios, coriscos, trovões riscaram o céu de chumbo.

Os trovões ribombando escapavam por línguas de fogo das entranhas das nuvens negras quase ao rés do chão.

Um desses raios dividiu a gameleira em duas fatias iguais que foram consumidas lentamente por línguas de fogo alaranjado, como se Joana d’Arc. estivesse outra vez acorrentada ali, naquele tronco fendido.

A velha porteira silente assistiu ao funeral da antiga companheira.

Lágrimas? Não. Desnecessárias. O céu chorava pelas duas...

A gameleira agora morta.

A porteira inabalável como seu mourão.

Voltar...

A barreira do tempo é vencida pela vivência cíclica.

Ontem, quando transposta pela primeira vez, os sonhos eram a gameleira, lançando para o alto os ideais, as aspirações.

Ficaram para trás o conformismo da existência pré-moldada.

Havia a autodeterminação, a quebra dos dogmas.

Erros...

Acertos...

Meias palavras...

Meios gestos...

O tic-tac dos anos marcando a cadência da existência morna, sem grandes triunfos, nem grandes derrotas... apenas o trilhar cinzento em dias sem sol.

O esmaecer da existência exige retroceder, reavaliar, recomeçar.

Todo recomeço tem um ponto de partida...

A porteira.

A velha porteira que separa dois mundos.

Lá fora a vida, cá dentro o nada ser.

Nova gameleira para elevar os sonhos e testemunhar o som lânguido do vai e vem da porteira...

Da velha porteira.