MIL RAZÕES PARA EU DETESTAR APELIDOS

Confesso que não sei quem começou com esta história de apelidos. Quando em tenra idade averiguava com minha mãe a origem de seu apelido, ela costumava me contar que desde que o mundo é mundo, existem apelidos, e, que o seu, fora dado por meu avô, seu Miguel de Lima, pai de dezoito filhos, todos eles devidamente apelidados. Minha mãe era irmã da Bembém, da Querida, da Doninha, do Miguelzinho e assim por diante. Seu apelido Boleta era quase codinome, pois todos seus amigos, parentes e vizinhos, a tratavam por Boleta. Isto aconteceu lá pro lado do Yanduí, interior de Alegrete, onde minha mãe nasceu e se criou. Considero que dona Lucília, minha mãe, gostasse de seu apelido, pois não é que ela casou-se, passou a residir em Santa Maria e apresentou-se aqui, como Lucília ou Boleta? Toda vizinhança a tratava por Boleta e ela parecia que adorava. Menos eu, pois perto da minha casa havia uma menina que costumava mexer comigo, toda vez que eu passava. Imaginem, se a tigreza aqui iria permitir. Toda vez que ela passava por mim cumprimentava-me dizendo:

- “Bom dia! Neguinha da dona Borboleta!”

- “Boa tarde! Neguinha da dona Borboleta!”

- “Olá, negrinha da dona Borboleta!”!

Eu ficava me corroendo de raiva. Tinha vontade de picar a tal garota, mas como ela era bem maior do que eu engolia em seco, enquanto ela se afastava gozando da minha cara. A garota fazia de propósito, só para me ver furiosa.

Não recordo bem o porquê, só sei que naquele dia, eu estava ao portão, quando ela passou, cumprimentando-me:

- “Bom dia, negrinha da dona Borboleta!”

Virei fera, gaguejando e falando muito mal, pois tinha sérias dificuldades de fala, respondi:

-Guria nojenta, tu vai vê! Vou chamar o meu cachorro pra te pegar! E foi pra já:

- Tigre! Tigre! Pega! Pega!

Nunca pensei que o desgraçado do Tigre iria me obedecer de imediato. Feito fera, ele veio, passou pelo portão, indo ao alcance da menina, que desesperadamente corria em direção ao final da rua, que literalmente acabava, pois não tinha saída. Na última casa residiam Vovó Georgina e Vovô João, que naquele fatídico dia, haviam saído, deixando o portão chaveado. Em desesperada corrida, a garota não conseguindo abrir o portão, tentou escalar uma “cerca viva”, protegida por várias fileiras de arame farpado.

A partir do momento em que vi Tigre, em desabalada corrida, feito foguete, sair ao alcance da garota, fiquei apavorada, jamais imaginara que o cão fosse mordê-la. Afinal, Tigre era um cão vira-lata que ocupava seu tempo a dormir, coçar suas pulgas e correr atrás de galinhas e gatos. Ele nunca fora um cachorro de opinião, que terminasse o serviço iniciado. Ele corria um pouquinho e descansava. Ou por cansaço ou por excesso de peso ou falta de estima. Mas também, Tigre não era um cachorro salafrário, adepto da violência! Ele cumpria galhardamente sua função: dar sinal! Quando Tigre acuava, podíamos ir ver! Era alguém ou alguma coisa. Devidamente anunciados pelos latidos do Tigre.

De fato, o vagabundo do Tigre correu até próximo a última casa e voltou. Até aí, tudo bem! O problema foi que a garota não notou e na tentativa de se safar do cachorro, ela tentou transpor a cerca viva, metendo sua cabeça no arame farpado. Não deu outra, em poucos segundos, ela estava no portão da minha casa, aos berros:

- Dona Boleta, dona Boleta, olha aqui o que sua filha me fez!

Confesso que tremi nas bases , sabia que iria sobrar para mim! A garota que estava à minha frente se quer se assemelhava a que, há poucos minutos, passara e mexera comigo. Ao tentar entrar cerca adentro, ela se enredara no arame, estava irreconhecível. Banhada de sangue que jorrava aos borbotões, a ‘megera’ continuava me acusando que eu teria feito aquilo.

Bem, esqueci de apresentar dona Boleta - mulher austera, disciplinada e rígida, era de poucas palavras. Com ela era pau-pau, pedra-pedra. Não tive tempo de explicar, de me defender! Minha mãe colocou a menina para dentro, fez um curativo em sua testa, enquanto eu preparava água com açúcar, para acalmá-la. Minha irmã foi convocada para levá-la em casa e eu, levei uma bela surra, para aprender que não se atiça cachorro em quem passa!

Maria Rita
Enviado por Maria Rita em 12/07/2006
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