SENHOR OTTO

Quando me recordo de fatos isolados em relação a minha profissão a memória se espraia em alegrias e satisfações e em outras ela engole em seco pois nada mais havia o que fazer naquela época. Ainda é assim, nem todos os males a Medicina está apta a vencer com espada de fogo, como menino já sonhei: não haveria chance alguma para as doenças.

Hoje as crianças mais se encantam e se miram em heróis como O Homem Aranha. Teria medo e me esconderia se na minha infância alguém tivesse a ousadia de me apelidar de Aranha. Eu me olhava como os adultos que tinham algo a me mostrar. Espelhava-me em heróis de carne e osso. Passado! Passado... não gosto de pensar nele, mas como fugir quando dele eu posso tirar histórias e fingir ou atuar como sendo a fase da vida que mais me proporcionou alegrias? Que me recorde, tristezas só quando morreu meu galo.

Existem outras dessas passagens que também mexem comigo e não aconteceram lá atrás, no Alto, mas aqui na minha adorada Friburgo escolhida para me aninhar e toda a minha família e despejar os aconselhamentos acumulados em mais de trinta anos de estudos até a minha formatura e mais de quarenta já no Morro Queimado. Foi aqui que mais aprendi e pude sempre me manter par a par aos ensinamentos colhidos ou buscados além.

O “seu” Otto foi uma dessas pessoas que conheci e muito me ajudou, sem nunca ter sabido disso. Já era um senhor idoso, portador desde criança de uma alta miopia e que a idade malvada lhe presenteara com catarata.

Um dia apareceu ao meu consultório e foi a primeira vez que nos vimos. Sentou-se, anotei dados na ficha e então sim, perguntei-lhe o motivo da consulta. Sem nenhuma queixa ou resmungos foi curto e sem rodeios:

- O senhor é novo, saiu da Faculdade agora. Então me diga: já há remédios para curar uma catarata?

Disse-lhe que ainda não e o tratamento seria cirúrgico. Não pude constatar mais nada, pois levantou-se, agradeceu, deu-me a mão despedindo-se e me disse na bucha que morreria cego mas não enfrentaria a operação. Também me mantive na reserva de não influenciá-lo em nada, respeitando a sua vontade. Além do mais uma catarata para ser operada naquela época era necessário esperar “amadurar-se”. Mais ainda, também era preciso que a do outro olho estivesse em situação semelhante, pois haveria uma percepção de visão dupla, muito pior do que a baixa visual somente num dos olhos.

Encontrei-me com a pessoa que me indicou e disse que não parecia ter ficado magoado ou insatisfeito com o que dissera, pois já sabia dos outros oculistas. Disse-lhe que não deveria ser influenciado, pois a cirurgia dele não era isenta de complicações, graças à alta miopia. Naquela época nós acreditávamos que o olho míope era muito mais fraco que os outros e mexer nele era buscar encrencas. Complementei: se ele tiver ainda uma vida longa, vai submeter-se, pois a catarata é progressiva. Não deu outra.

Apareceu ao consultório. Literalmente gelei! Se voltou, foi para falar sobre a cirurgia e eu estava tão recentemente aqui para enfrentar tamanho desafio. Marcamos e ele me disse ter uma filha funcionária de uma firma suíça e se haveria alguma coisa que eu necessitasse... Caiu do céu! As melhores agulhas para sutura da córnea (usávamos nove a doze pontos) eram Grisharber e de lá. Ela me trouxe três, envelopadas. Usei uma naquela cirurgia e guardei uma outra para mim (tinha trinta e um anos naquela época!).

Enfim, seu Otto foi operado e o coloquei de repouso durante um mês. Ia ao seu apartamento todos os dias para que ele não fizesse o mínimo esforço físico a fim de poupar a sua retina. Era a complicação mais temida. Todas as vezes que eu abria o curativo ele se extasiava. Estava enxergando como nunca vira antes. Com a retirada do seu cristalino, a miopia e a catarata “desapareceram” e via maior e melhor sem os óculos. Modernamente é umas das técnicas usadas para corrigir altas miopias (cirurgia alternativa). No dia em que o deixei sem o curativo, deu-me um abraço prolongado. Tornamo-nos amigos para sempre; um papo proveitoso de duas gerações distantes nos fortuitos encontros.

Recentemente, remexendo ao acaso uma velha carteira, encontrei um pequeno envelope. Abri-o. Lá estavam, enroladas em algodão, completamente enferrujadas e sem nenhuma serventia, as duas outras agulhas. Logo, logo apareceram as montadas com fios muito melhores e também porque até agora não necessitei ter as minhas possíveis e esperadas cataratas operadas.

Valeu o achado. Lembrei-me do seu Otto que me confiou ultrapassar o nosso maior receio e de ter confidenciado arrependimento de não ter sido operado antes. Na época eu não tinha ainda tanta bronca do passado.

Aperto de mãos. Sorrimos felizes e nunca mais nos vimos. Só isso!

Segunda-feira, 7 de abril de 2008.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 15/11/2009
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