Encontro pelas Águas

Dias surpreendentes e difíceis. Assim definiria minha passagem por Rio de Contas e comunidades. Estava feliz de volta à capital no domingo à noite. Quase dez horas de viagem. Antes de abrir a porta só queria um banho bem demorado pra relaxar e a cama macia e quentinha esperando ansiosamente por mim.

Mala no canto, abro a torneira para lavar as mãos antes de pegar toalha e roupa limpa. Nada de água. Abri a torneira da área de serviço. Nada de água. Vou até o banheiro, abro a torneira. Nada de água. Olho o chuveiro. Fecho os olhos e estou vendo a cascata saindo da ducha. Mantra: vai ver água, vai ter água, tem de ter água aqui. O desespero faz a pessoa imaginar coisas absurdas. Nem um vestígio de água nos encamentos.

Qualquer pessoa se sentiria, pelo baixo, injustiçada. Ocorreu-me uma raiva súbita. Lembrei-me do rosto de todas as mulheres que vi durante a semana passada, falando sobre os problemas de água que enfrentam a dureza da vida em contraste com a fluidez da água que tanto precisamos.

Dei meu sangue nos últimos dias mobilizando mais de duzentas mulheres para o “Encontro pelas Águas” na região da Chapada e agora não tem uma gota nas torneiras em meu apartamento. A vida é irônica e muito injusta, sabe?

Vou até o apartamento da síndica e descubro que está acontecendo reunião de condomínio. Estava furiosa, desci para decapitar um. Minha primeira reunião de condomínio. Fui sedenta, estava com vontade de barbarizar.

As pessoas já estavam em guerra. Fiquei atônita com o comportamento delas. Dedos na cara do vizinho, ata jogada no banco e saída barulhenta da reunião. Parecia que eu era a descontrolada mais polida do momento. Numa pequeníssima pausa perguntei sobre o problema. “Veremos isso assim que a reunião acabar”.

Esperei 10 minutos, mais 10 e mais 5 e falei ‘olha, viajei hoje 600 quilômetros, acabo de chegar de Rio de Contas, sabe onde é? Tudo bem, nem eu sabia. Mas sabia que era longe, pois quando não sabemos onde uma cidade fica, é porque é longe. Peguei estrada de terra, indo em quilombos, comunidades no fim do mundo, enfrentei sabotagem, picuinhas, neuroses coletivas, preciso tomar um banho’.

As pessoas pareciam compreender minha necessidade de ter água no apartamento até o momento no qual surtei: e o melhor de tudo: NA VAN DO IBAMA!".

Os rostos modificaram-se e a empatia antes presente, mudou para uma surpresa incompreensível. A menos que você seja funcionário do Ibama, Ima, Ingá e outros órgãos afins, saberia o motivo que foi a gota d’água. Tentei recobrar minha lucidez "foram quase 10 horas sem reclinar a poltrona, sem ar condicionado, tomando vento de estrada, meu cabelo não entra pente de tanto nó, bancos duros com as pernas batendo na cadeira da frente. Podemos resolver isso da água agora?".

Minutos depois estava carregando baldes, como as lavadeiras, marisqueiras, quilombolas, mulheres do campo, pescadoras, artesãs de crivo e bordado que conheci pessoalmente. No final de domingo virei uma delas, estava feliz, como elas ficam, com a água que é possível conseguir.

Andréa Sant Anna
Enviado por Andréa Sant Anna em 22/11/2009
Código do texto: T1937481
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