Apelação Emocional

      
Quem me conhece sabe que sou um típico nordestino de "coração de manteiga", mas confesso que tenho tolerância zero para qualquer tipo de apelação emocional, em outras palavras, a tentativa de uma pessoa de atrair para si mesma a simpatia ou solidariedade alheia mediante a divulgação de suas carências ou limitações, desde que possa de alguma forma resolvê-las ou minimizá-las.
      O brasileiro é via de regra muito sentimental, por isso mesmo vive constantemente sob o risco de ser iludido pelas falácias dos bons de bico. Uma vez vi, aqui no Recanto, uma escritora declarar - irritada com a reclamação de um suposto escritor de elite a um seu comentário - que preferia ler e comentar os textos de Fulano, porque este não tinha vaidade literária, escrevia do jeito que sabia - já que, no seu Perfil, informara que sequer houvera terminado os estudos do Curso Primário.
     Coitadinho, não é mesmo? Queria ser autor literário - como os outros - mas como não dominava as mais elementares regras gramaticais, deveria ser desculpado por escrever somente do jeito que ele sabia. Você concorda com essa situação?
     Eu não! Se eu não tivesse estudos suficientes para manejar a escrita e tivesse inspiração de poeta, contista ou qualquer coisa semelhante, eu teria humildade e bom senso suficientes para pedir a alguém - mais instruído que eu - para passar a lanterna no meu texto, antes de levá-lo ao público - evitando que eu publicasse coisas mal escritas, pois, como adverte o provérbio latino, "Palabras volant sed scripta est" ( As palavras voam, mas a escrita fica").
     E cá entre nós, não seria essa informação no Perfil do "coitadinho" já uma tentativa de apelação emocional para justificar futuramente a sua falta de cuidados com a escrita?
     Então, lembro, a propósito, dois episódios que presenciei na década de 60, quando morava no Rio de Janeiro.
     Um malandro fora pego em flagrante quando tentava roubar uma padaria. O dono, um português, segurava-o fortemente aguardando a chegada da viatura policial. Foi chegando gente, formou-se uma aglomeração, e o malandro tentou uma jogada esperta:
     - Eu não queria roubar dinheiro! Estou sem comer há três dias e estava querendo apenas um pão para matar a minha fome!
     Alguém manifestou-se solidário e berrou:
     - Olhem aí, vejam como são as coisas! Se ele pedisse o pão, esse miserável portuga não lhe daria. O cara foi obrigado a roubar para não morrer de fome e esse aí, que veio para o Brasil para explorar os brasileiros, ainda quer lhe botar na cadeia!
     Cresceu um zum-zum-zum de revolta entre o populacho e já havia quem sugerisse que libertassem o malando e linchassem o comerciante português, quando parou uma viatura policial e desceu dela um velho policial. Olhou para a multidão, avistou o malandro, deu uma risadinha, e falou, impaciente:
     - Ah, és tu, Fumacinha? Roubando de novo, hein? Vamos, vamos!
     O malandro não deu mais um pio, deixou-se algemar pacificamente e foi levado para a cadeia. Moral da história: era um perigosíssimo gatuno, mas já estava - com a sua lábia fácil e esperta - despertando a solidariedade e a pena do povão.
     De outra feita, caminhando pelo Largo da Carioca, vi cair na minha frente uma pessoa. Eu e outros transeuntes apertamos o passo e chegamos perto do cidadão quase desmaiado. Tinha aspecto humilde e parecia estar passando mal. Alguém o soergueu do chão, ele abriu os olhos, e deu um profundo gemido. Perguntaram-lhe:
     - Que aconteceu, cara?
     - É o seguinte, minha gente. Vim da Paraíba há uma semana para trabalhar no Rio, mas não consegui emprego nenhum. Faz três dias que não tomo nem café pela manhã...
     Vivíamos os conturbados dias que precederam ao Golpe Militar de 1964 e logo um "revolucionário" promoveu um discurso político:
     - Esse é o retrato do Brasil! Nós morrendo de fome e os americanos sugando o nosso sangue! Vamos tomar o poder, viva o Comunismo!
     Mas alguém, mais sensato, ponderou:
     - Sim, mas enquanto o Comunismo não chega, vamos providenciar a comida para o pobre coitado. Façamos uma vaquinha aqui entre nós para arrecadar uma grana para ele!
     Com o coração inundado de piedade pelo pobre homem, fiz uma gorda contribuição para a vaquinha: quase tudo que eu tinha no bolso, exceto o dinheiro para a passagem do trem da Central. E fui para casa, convencido de que aquela caridade tinha melhorado a minha situação devedora no caderninho de anotações do Homem...
     Três meses depois, eu estava na Praça Saens Peña, na Tijuca, quando avistei uma multidão em volta de um homem caído. Para o meu espanto, era o mesmíssimo homem do Largo da Carioca e contando a mesmíssima história!
     Então, entendi o golpe. Era o mendigo mais esperto que já vi. Não ficava sentado pedindo esmolas. Caía no meio do povo, despertava a atenção para ele e contava a sua triste história de desgraça pessoal! Infalível golpe, resistir, quem há de?
     E tornei-me esperto para os "coitadinhos" de plantão...
    

Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 02/12/2009
Reeditado em 04/12/2009
Código do texto: T1956226
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