104 anos

De mãos dadas com a irmã caçula que já completou mais de noventa anos, rodeada de filhos, netos, bisnetos e tataraneta, Milu se emocionou ouvindo uma música no seu aniversário de 104 anos.

Foram 37963 dias até esse dia chegar. E Milu era o retrato da felicidade. Nem a passagem no hospital mais cedo por um pequeno incidente fez a chegada dela à festa menos sorridente. Milu entrou radiante com seus pontos no braço direito distribuindo carinho, bom humor espantando a preocupação de todos com sua habitual sabedoria.

Ainda no hospital, ao se despedir do enfermeiro que fez a sutura, pegou sua mão com doçura e disse "você tem mãos de fada". A caminho da festa lembrou "aprendi gentileza com seu avô". O companheiro partiu há 23 anos e ela não o esquece, nem por um dia.

- E como a senhora conheceu, vô?

- Seu avô trabalhava numa loja, eu chegava pedindo para olhar as fazendas. Olhava, olhava e dizia que não gostava, que não era o que pensava para meus vestidos, na verdade eu ia era para ver o caxeiro... - e apareceu um sorriso sapeca em Milu.

- VÓ!!! Paqueradora, hein?!

- Ele só andava todo arrumado - fechou os olhos relembrando - de gravata, um moreno alto, bonito. Largou muitas pretendentes para ficar comigo. Meu pai não queria que eu casasse com ele, porque não era rico, não tinha terra, me mandou para outra cidade.

- E aí?

- E aí que meu pai esqueceu que os Correios estavam a minha disposição! - Idéia central do slogan da Oi no longinquo início do século XX: Simples assim.

O senso humor dessa mulher sempre vai te pegar de surpresa. Ela não economiza risos "ô, e de que serve estar viva sem sorrir?". É a pergunta-resposta que ela lança para quem comenta sobre seu bom humor implacável. A vida para Milu é eterna alegria.

- Em todos esses anos vó, o que foi mais difícil, o que foi ruim?

- Minha filha, só aconteceu coisa boa na minha vida. O que não foi muito bom, sabe que já nem lembro?

Ela aprendeu a ler, sem autorização do pai, pagando com ovos e galinha a um senhor numa fazenda próxima. Quando achou o amor, fugiu com ele para casar. Vieram filhos. Muitos. Foram mais de 20 gestações. "Fiquei grávida tantas vezes que já estava de calo no calcanhar!". Foi mãe, mulher, dona de pensão, lavou roupa para aumentar a renda, mudou de cidade para que os filhos pudessem ter educação e mais oportunidades. Conhece cada um dos netos, bisnetos e tataranetos pelo nome, sabe onde moram, lê o jornal A Tarde diariamente, ouve o radinho de pilha quando está na cama para não perder as notícias, assiste novelas, pergunta sem constrangimento o que desconhece, faz novas amizades sem dificuldade. Ela descomplica problemas, simplifica as coisas, entende as pessoas. Essa mulher incrível de 104 anos é minha avó, tive a tremenda sorte e a honra de ser uma de suas descendentes.

Só o corpo de Milu envelheceu, a mente está jovem, os lapsos existem, mas são poucos. Se existesse a fonte da juventude e vó desse um mergulho nela, sairia pronta para curtir mais cento e quatro anos.

Esse ser humano belíssimo aprendeu a viver. Quem quiser aprender também, basta ouvir suas histórias, sentir seu olhar amoroso, ouvir seus sorrisos. Tenho a impressão que vó fez um acordo com o Criador mais ou menos assim:

- Milu, você desce lá, vai fazer uma jornada recheada de surpresas, experimenta tudo que desejar e enquanto você estiver feliz, deixo você ficar.

- Pra mim tá bom, estamos combinados. A gente se fala usando esse código.

E assim ela veio. Vai sorrindo espalhando vida, Ele entende a mensagem e dá mais linha de tempo. Ela continua aproveitando e sorrindo.

Andréa Sant Anna
Enviado por Andréa Sant Anna em 07/12/2009
Código do texto: T1965273
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