RESPONSAR SANTO ANTÔNIO

Meu avô possuiu um canivete Roger. Teteia! Não era grande, era médio, cabo preto não sei de quê, folha tradicional e cortava que nem um capeta. Quando ele o afiava num pedaço de talo de piteira raspava os pelos dos braços ao ponto de cabelinho voar longe e o danado, só para me invejar, dava aquela gargalhada e se abaixava de tanto rir. Como me lembro!

Um dia o canivete sumiu. Sumiu o canivete e sobrou pra todo mundo, até para quem nunca pôs a mão nele, não por não ter vontade, mas por ciúmes. Costumava dizer que tinha mais ciúmes de uma coisa que gostava do que da mulher dos outros. E ria a valer disso!

Resolveu então responsar Santo Antônio. Era uma espécie de reza ou mandinga que se fazia para que aquele objeto perdido ou furtado fosse encontrado.

A pessoa contatava uma rezadeira especialista no assunto e depois disso praticava-se um verdadeiro spam caipira. Quanto mais pessoas soubessem da responsa, mais possibilidade se teria de reaver o bem. Havia uma crendice de que se alguém aliviasse alguma coisa da outra o castigo viria a cavalo e com tudo pra cima do lalau depois da responsa. Você já manjou como a coisa funcionava, não é mesmo? Como dizia o meu Tipedro: boca de siri!

Não sei se foi pelo santo ou não, mas o canivete apareceu. Estava com a folha aberta em cima de uma travessa de madeira lá no alto da varanda do engenho, perto daquela polia maior que acionava o dínamo. Certamente o Jão subiu para consertar o correão de couro cru e o esqueceu por lá. Que festa ele fez, mas a esculhambação que eu levei, ele, o santo, nem compensou. Levei na tarraqueta e ele nem ligou. Santo vai ter tempo pra dar ouvidos a crianças? É. Acho que estou enganado. Santo escuta todos.

Tenho mania por canivetes e bonés. Incrível? Não acredita? Mas tenho! Vi com uma pessoa um canivete alemão da marca Mauser (acho que era isso). Gamei! Não gosto muito desses canivetes que mais parecem uma caixa de ferramentas em miniatura. Canivete pra mim há de ser daqueles tradicionais, com uma folha ou duas, no máximo. Já vi canivete que a gente mal pode fechar a mão de tanta coisa que há nele. Até serrote! Pode?

Eu e Guilherme tínhamos também um canivete. Criança da roça naquele tempo tinha de ter sempre pendurado no pescoço um barbante de farmácia, todo listrado de verde ou vermelho empencado de medalhinhas de santos, crucifixos e patuá de azougue. Uma setra com gancho de esperta e couro de uma botina desgastada pelo uso abandonada no terreiro completava o adereço. No bolso da calça curta um pião e uma fieira com um pedaço livre pendurado para ir balançando ao caminhar. Na correia ou no cós da calça um chaveiro niquelado com enfeites de florzinhas vermelhas em baixo relevo e engatado nisso um canivete. Dorso nu, rosto suado, ponta do nariz vermelha e esfolada pelo sol do verão, beiços sujos com algum resíduo do caldo ressequido e espirrado ali pelo trincar dos dentes na cana madura e os cantos da boca quase sempre feridos pela terebintina na seiva da manga verde gulosamente comida com sal.

Você acabou de ver um menino capiau típico e feliz num singelo retrato esboçado por um hipotético pintor medíocre. Quanta saudade!

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(Já me refiz!)

O meu canivete era bonito, esguio, cabo de madrepérola, folha pequena terminada em ponta clássica e três rebites amarelos de metal prendendo todo o conjunto. O do Guilherme era mais vulgar. Um Corneta com cabo de folha de metal escuro com relevos e folha larga terminada sem ponta, romba. Só havia um detalhe: o dele cortava pra burro e o meu era metido a belo Antônio. Ótimo para cortar talos de inhame para fazer a cruzeta dos moinhos, mas na hora de encarar o bambu para o eixo, pipocava.

Um dia resolvemos trocá-los. Talvez ele estivesse de olho na beleza do meu e eu na qualidade do dele. Seja como for, foi só efetuar a barganha e não demorou muito tempo nós os perdermos. Não me lembro se responsamos ou não e nem sei se os reouvemos. Lembro-me desse fato e, talvez, nossos olhos grandes nos fizeram pagar pela ambição, pela inveja. Bem-feito!

Agora, pouco tempo atrás, eu me lembrei das benesses e resolvi responsar o bondoso e competente santo também casamenteiro. Não que eu tenha perdido ou alguém tenha surrupiado algo meu, mas reacendeu aquele desejo de ter um canivete Roger ou Mauser. Imaginei que ele pudesse indicar-me um lugar onde poderei comprar e concretizar um dos meus mais antigos anseios. Coisa de criança, eu sei, mas não dizem que depois de velha a gente vira a folha? Ah! To lixando! Quero mesmo é ter um canivete daqueles!

Dê uma forcinha, tá?

Dbadini
Enviado por Dbadini em 23/12/2009
Código do texto: T1992351