Tempos de angústia

24, 23, 22, 21...

– Ei, pai! Esse sinal é bem legal! Ele fica marcando o tempo que falta pra ficar vermelho e fechar!

– É o sinal dos angustiados, responde o pai, ao volante, sorrindo.

– Por que, pai?

– Veja, filha... 6, 5, 4, 3,... Ai, meu Deus, vai fechar! Ai, meu Deus, não vai dar tempo!

– Fechou, pai! – é a resposta, satisfeita, da garotinha que se desmancha em gargalhadas. – Nem passou! Nem passou!

– Você tirou minha atenção... Ainda bem que eu era o último da fila; se não fosse, nem sei o que poderia acontecer.

– Vai abrir, pai! Olhe!

24, 23, 22,... Enquanto os números decresciam e o veículo cruzava o semáforo de uma cidadezinha do interior do estado, o pai ouvia as caçoadas da filha mais nova que não parava de gritar no banco traseiro: ‘4, 3, 2, 1... Ai, meu Deus, vai fechar! Ai, meu Deus, não vai dar tempo!’...

Essa tal modernidade está mesmo conectada ao modo de viver das pessoas. Não bastassem os despertadores. Não bastassem os celulares com seus despertadores. Não bastassem os relógios com seus despertadores. Não bastassem os computadores com seus despertadores plugados... Agora temos que nos angustiar, também, nos semáforos que nos avisam cadenciadamente que nosso tempo está acabando.

– Você é agoniado demais, homem!

– Eu? Sei. E você é a melhor expressão de tranquilidade do mundo, não é? Nunca deixou de fazer nada por causa do tempo...

– Ei, pai! – interrompe a filha mais velha do casal. – parece que a mamãe esqueceu-se da briga que vocês tiveram no dia do casamento quando ela...

– Sua mãe tem memória curta demais, filha.

– Você que não explica as coisas direito, ora!

– Eu consegui um hotel à beira-mar, no zero oitocentos, com um engenheiro amigo meu. Acertamos tudo. No dia do casamento, quando falei pra ela que iríamos pernoitar num hotel, ela não quis. De surpresa, o presente transformou-se em discussão.

– Já falei pra você que uma vez vi uma noiva saindo, ainda com o vestido de noiva, oito horas da manhã de um hotel e aquilo me chocou, ora! Só de me imaginar saindo pela manhã dum hotel parecendo fugitiva, ainda com a roupa de noiva, dava inquietação...

– Que frescura! Perdeu foi uma noite de luxo! Era só a sua noiva ter levado uma roupa extra... Você teve seis anos pra pensar nisso e não vislumbrou essa alternativa.

– É mesmo, mãe... Que frescura!

– Em compensação, seu pai quase me bate porque eu não quis ir pra casa sem tomar um pouco de refrigerante.

– Estava passando fome?

– Fiquei a noite sem comer. Custava esperar enquanto eu tomava um copinho?

– Ei, mãe! Então a senhora perdeu uma noite num hotel de luxo pra ficar na casa da vovó brigada com o papai por causa de um copo de refrigerante, logo na noite de núpcias? – as duas filhas eram pura gargalhada.

– Foi.

– É o tempo, filha... Pressa. A moça chique queria passar dias no hotel, nada de pernoitar. Por causa disso, trocou um hotel pelo quarto da casa da sua avó e ficou a noite toda empachada com o espoca bucho que tomou! – todos, inclusive a mãe, sorriram!

– Como é que pode, meu Deus! Como é que uma pessoa se transforma tanto assim depois que casa? Antes, eram cartinhas, meu amor pra lá meu amor pra cá...

– Ei, pai! – fala a filha mais nova, interrompendo o saudosismo da mãe. – Outro sinal com os números... Será que dessa vez vai dar tempo? ‘Ai, meu Deus, vai fechar! Ai, meu Deus, não vai dar tempo!’

4, 3, 2, 1...

A família continua trafegando pelas ruas da cidadezinha do interior, onde apenas quatro semáforos angustiam motoristas apressados e ansiosos que, parados, esperando a luzinha vermelha tornar-se verde, transitam entre o passado e o presente de suas vidas, recordando fatos que o tempo não consegue fazer esquecer.

Nijair Araújo Pinto

Crato-CE, 24 de dezembro de 2009.

15h30min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 24/12/2009
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