MINÚSCULAS OBREIRAS

MINÚSCULAS OBREIRAS

O agricultor, vendo estreitos carreiros, limpos como se tivessem sido recém varridos, com fragmentos de folhas ainda verdes pelas bordas, fica fulo da vida. Sabe que nas redondezas tem ou está se formando uma cidade dessas indesejáveis moradoras urbanas, que não gostam de morar isoladas. Constroem seus celeiros comunitários (ou não, pois parece que não foram feitos estudos ainda para saber se elas são “todas por uma e uma por todas’), quando levam a matéria prima do seu alimento para dentro das suas furnas. O fato é que preparam suas estradas compriiiiiiiidas, para buscar fardos e mais fardos de alimentos para armazenar, essas parecem comunitárias. Durante o verão todo isto acontece todos os dias, o dia todo e durante a noite ainda mais. Mas não é dessas formigas cortadeiras chamadas saúvas que eu quero falar. Quero compartilhar com vocês uma coisa que, aliás, a gente já sabia por ouvir os outros contar – a comunicação entre si das formigas.

Quando a gente se dá ao prazer de um espumante chimarrão à sombra de uma frondosa árvore frente à casa, a brisa que refresca o corpo e bafeja idéias novas no bestunto, ajuda “ver” aquilo que, por rotineiro costume, não nos chama a atenção – o mundo quase invisível que nos rodeia, as formigas, por exemplo. Existem-nas tão miúdas que a olhos nus dificilmente as vemos. Mas estão por aí e, o que é mais fantástico, estão trabalhando. E trabalhando para a coletividade, não egoisticamente, só para o indivíduo, como sói acontecer entre os seres humanos.

Eu estava no meu lazer preferido – praticando o esporte do chimarrão. Mas nada é mais chato que tocar uma mosca quatro ou cinco vezes e senti-la na pele novamente. Para esse tipo de agressão preveni-me. Comprei uma arma letal para esses abjetos voadores – a espátula própria para abater insetos. Quando estou sugando a doce-amarga seiva da teta de ébano, que os gaúchos apelidaram de cuia, deixo à mão na banqueta a meu lado uma dessas armas.

No vai-e-vem do toca-toca, sem que me dessem azo para com elas fumar o cachimbo da paz, vi sentar-se na minha perna uma dessas moscas grandes e peludas, que espalham bernes em todas as superfícies onde pousam. Peguei a espátula bem firme e, com a devida perícia – zapt – derrubei a enorme mosca no piso de cerâmica. Missão cumprida. Essa não iria mais plantar seus minúsculos bernezinhos em ninguém. Estava mortinha da silva. Virara pasto para quem a quisesse engolir. Eu, pachorrentamente, recomecei a sugar o mate. De vez em quando olhava para a mosca. Passaram-se uns bons quinze minutos e vi uma mini formiga correndo de um lado para outro, com certeza, procurando um naco de carne para o arrastar ao celeiro e servir de alimento para sua família. Até ali estava tudo normal, porque, como eu disse, existe em torno da gente um exército quase invisível de pequenos seres, sempre atentos. Segui o corre-corre da formiguinha. Já havia esquecido a mosca do berne. Voltei toda a minha atenção para aquela coisinha, que nada mais queria que achar comida e, para ela isso configurava um trabalho sério e importante, sem premissa outra que encontrar essa matéria prima (isso eu descobri depois). Correndo sempre em “alta” velocidade, vi que a danadinha se aproximou da mosca. Como que tropeçando nela, quis logo segurar numa das asas para carregá-la. Mordeu de um lado; mordeu de outro, e nada de poder arrastá-la. O fardo era grande demais. Afastou-se um porco, respirou fundo, esticou os bracinhos como para fazer alongamento, entrelaçou os dedos e fê-los estralar (não escutei porque um caminhão passou na rua no momento) e, após esse pequeno exercício, atacou de vez – e nada de prático aconteceu. De repente a pequena trabalhadora desistiu. Afastou-se, sempre correndo, traçou uma linha reta e, alguns metros depois, sumiu atrás de um pote com plantas. Até cometi o pecado de pensar que foi de preguiça que ela havia desistido. Passaram-se mais alguns minutos e eu quase já dera o caso “mosca” por arquivado, quando vi a menina reaparecer, agora mais calma e solene. Atrás dela, em fila indiana, apareceram centenas de outras formiguinhas, quiçá a família toda. Trouxera junto, também, um bom número de cortadeiras – essas eram um pouco maiores e tinham a cabeça bem maior que as outras. Cabeças que pareciam feitas de vidro reluzente e com cortantes mandíbulas. Disse de mim para comigo – e essa agora!!! O pequeno exército rodeou o presunto voador e os cabeçudos magarefes começaram a esfolar o bicho e já aproveitaram a retalha-lo em minúsculas partes, as quais as pequenas operárias de pronto carregaram para o seu destino – a toca.

Moral da história: elas, as formigas, bem como alguns outros insetos de convivência coletiva, não sei por que artes de Deus, comunicam-se entre si e se entendem, direcionam e organizam. Trabalham todas juntas para não lhes faltar o alimento, e mais, armazenam as folhas e insetos, para que se transformem em fungos, que servirão de alimento e, todos eles, tenham o que comer nos meses tristes e frios do inverno, quando todos permanecem fechados em casa.

Quantas vezes vemos na sociedade humana acontecer tal coisa? Quantas vezes vemos a prática desse tipo de solidariedade? O inverso é verdadeiro – se pudermos tirar do outro o pão ganho individualmente e com muito suor e esforço, o tiramos. Só nesse sentido somos iguais às formigas: trabalhamos de dia e de noite, todos os dias das nossas vidas. Mas somos diferentes nas intenções, cada qual querendo encher o próprio bolso e, muitas vezes, sem a devida lisura. Acredito que essa é a lição das formigas – elas amam verdadeiramente o próximo, enquanto que nós humanos, civilizados e inteligentes, usamos o “amor” ao próximo em causa própria, quando esse simulacro rende honrarias ou dinheiro. Vamos matricular-nos na escola das formigas?

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 02/01/2010
Código do texto: T2007074
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