O Haiti não é aqui

Como a maioria dos seres humanos, sou curiosa. Mas oscilo entre a informação e a ignorância, tentando me equilibrar num mundo de excessivos alertas que jamais nos permite a alienação total – e é por isso que filtro, ao menos em parte, os jornais (menos os escritos e mais os televisionados): nem toda informação é relevante ou pertinente, e esta atitude avestruzesca me auxilia a manter os neurônios abastecidos do que vale a pena.

Longe de justificar minha atitude um tanto pueril, uma distância conveniente dos meios de comunicação como estratégia de sobrevivência não me exime nem me impede de ter consciência. E há certas coisas que nenhum ermitão moderno deixa de, ao menos, ficar sabendo: porém, manter-se na superfície dessa informação, a partir daí, é escolha individual.

A tragédia no Haiti é uma dessas informações que não pude ignorar, e tenho lido o que posso. Mas uma abordagem inusitada dessa tragédia me chamou a atenção. A colunista Bárbara Gancia, no jornal Folha de São Paulo de 15/01/2010, atenta para o fato de que pouquíssimas pessoas sabiam do paradeiro da doutora Zilda Arns. Nem mesmo seu irmão sabia que ela estava prestando serviços no Haiti. E Bárbara dá um título bastante apropriado para seu artigo: O ego encolhido de dona Zilda Arns. E ressalta, com humor e ironia: “Se partisse em missão para o Haiti, eu ligaria correndo para passar a informação para a Mônica Bergamo”.

O país mais pobre das Américas, onde 45% da população é analfabeta – e, segundo o CIA World Factbook, 80% vivem abaixo da linha de pobreza – foi assolado por um terremoto de 7,3 graus na escala Richter, cujas proporções se tornaram ainda mais gigantescas em virtude destes dados. Sabe-se que, lá, o socorro oficial não existe, pois o Estado está falido e a economia em frangalhos. Não existem também água, alimentos, combustível. Os telefones celulares, mais numerosos que os fixos, não funcionam. Os mortos aglomeram-se nas ruas, a população sobrevivente caminha sem rumo por entre os corpos e só conta com ajuda de voluntários. Quem sobreviveu ao terremoto pode morrer de desnutrição ou de doenças.

É difícil sequer imaginar um cenário de horror como este, e era naquele país que dona Zilda atuava em silêncio. Evidentemente, eu não sabia. Ela e mais um grupo de abnegados seres humanos, alguns também vítimas do terremoto. O terremoto que abriu os olhos de desavisados como eu para duas informações que puderam ser constatadas em sua real essência...

A primeira: ainda que saibamos da existência da subnutrição, do analfabetismo e do aviltamento da vida humana em muitas regiões do mundo, essas condições podem ser levadas a extremos. Nessa hora, ver fotos e ler verdades difíceis nos relembra o fato de sermos todos pertencentes à mesma raça, à mesma linhagem, à mesma frágil estrutura. Sentir a dor do outro para nos humanizar é um exercício indispensável, e fugir disso é muito mais que alienação: é covardia.

A segunda: existem, sim, pessoas cujo "ego encolhido" não permite que se divulgue o bem que fazem. Essas almas levam a extremos a máxima “fazer o bem sem olhar a quem”. Também é um exercício de humanização que nos faz repensar nossas atitudes para com o outro. Ainda que não possamos ir ao Haiti, a Serra Leoa, a Níger, ainda assim há muito por se fazer, a começar por nossa casa, nossa rua, nosso bairro, nossa cidade. Humildemente, sem necessidade de alarde, que é para não aumentar ainda mais o número de informações inúteis a que estamos expostos diariamente.

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Agradeço à Bárbara Gancia a autorização para a publicação deste texto.