"Doidinho"

"Doidinho”

Outro dia, caminhando de volta pra casa vinda do centro da cidade, fui praticamente obrigada a uma paradinha para beber água. Fazia um calorão danado de grande, daqueles que quase fritam os miolos da gente, e entrei num boteco. Estava eu, justamente na “minha” rua. Sim, considero-a minha rua. Foi ali, na rua Urucuia, que passei bons e maus momentos da minha infância e da minha adolescência.

Pois bem! Já com a garrafa de água, estupidamente gelada nas mãos sentei-me no meio-fio sem mesmo me preocupar se era correto ou não e fiquei olhando aquele lugar. Quantas lembranças, meu Deus! Quantas lembranças! Bebia a água aos golinhos, bem devagar; assim, matava a sede e a saudade. Deixei-me levar pelas lembranças...

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"Doidinho" morava a três quarteirões da minha casa. Era magro, o cabelo cortado bem baixinho, quase raspado. Raramente sorria e pronunciava mal as palavras. Sua fisionomia era estranha: nariz e boca desproporcionais em relação aos olhos miúdos. Vestia sempre uma calça - se não me engano, um brim azul já bem esbranquiçado - com a bainha tipo "pega-frango" e presa por suspensórios. A camisa, sempre clara, quando não era xadrez era de listras (incrível como essa imagem ainda me é nítida!). Na maioria das vezes, eu o via com os pés descalços e tinha como 'companheira' constante uma vassoura de piaçava com a qual varria e varria e varria boa parte das calçadas da vizinhança que são, ainda hoje, muito arborizadas. As árvores, de grande porte tais como "amendoeiras", paineiras e ciprestes, sujavam toda a calçada principalmente no mês de agosto quando os ventos se tornam mais constantes e fortes. "Doidinho" ia de esquina a esquina, varrendo toda aquela folhagem. Por várias vezes, dependendo da ventania, ele repetia a varrição na direção contrária. Era incrível a sua disposição!

Naquele tempo a maioria das brincadeiras acontecia na rua ou nos canteiros centrais da avenida Francisco Sales - que faz esquina com a "minha" rua - onde metade era gramado e metade terra batida, e os garotos costumavam jogar futebol (a famosa “pelada”). Quando “Doidinho” aparecia por perto, a garotada mexia com ele e ele corria atrás daquele bando de meninos, com a vassoura em punho, pronto para bater em qualquer um. Quando acontecia de a bola cair perto dele, ninguém se aproximava para pegá-la, por causa do medo de levar uma vassourada na cabeça. Nesses casos, “Doidinho” empurrava a bola com a vassoura em direção dos garotos e a “pelada” continuava.

Eu achava, naquela época, que ele era somente 'um pouco' mais velho que eu. Anos mais tarde, fiquei sabendo que, na verdade, ele era 'muito’ mais velho.

Pois bem, um episódio que me marcou, aconteceu num início de tarde assim que saí de casa rumo à escola. Na década de 60, era comum a falta de água em Belo Horizonte e certa vez, as professoras pediram aos pais que os alunos levassem sua própria água junto com a merenda. Lembro-me bem que naquela época eu já podia ir à escola sem acompanhante. A aula começava às 13 horas e lá fui eu, sossegada, subindo a rua em direção ao grupo escolar, quando de repente surge o "Doidinho" e tira a garrafa das minhas mãos, abre e joga fora toda a água. Até então, eu nunca havia chegado perto dele. Foi uma experiência difícil. Ele balbuciava alguns sons, estava nervoso, e eu, temerosa, chorava desesperada até que, não sei como, estava novamente em casa. Alguém me acalmou; disseram-me que ele tinha muito medo de água e, com receio de que eu pudesse jogar nele a água da garrafa fez o que fez. Refeita do susto, tomei novamente o caminho da escola com uma outra garrafinha cheia de água e, desta vez, "escoltada" por um irmão mais velho. "Doidinho" já não se encontrava nas imediações. Nas semanas seguintes e enquanto durou a falta de água, eu levei minha garrafinha bem escondida dentro da boa e velha pasta de couro.

N.A.

O verdadeiro nome desse “personagem” que amedrontou a minha infância era Ildeu. Quanto à origem da doença que o acometia, nunca soube do que se tratava.

Hoje, sinto uma tristeza muito grande ao pensar o quanto éramos ignorantes em relação às enfermidades psicológicas existentes e das inúmeras vezes que deixamos o Ildeu numa situação constrangedora e infeliz.

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