RELEGADOS

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        Havia naquela casa um quarto bem no fundo...  aonde ficavam os serviçais que não compareciam à sala de visitas ... na qual se prestavam reverências e homenagens a pessoas ditas respeitáveis ... mas lá no muquifo ao qual foram relegados aqueles que ousaram quebrar as regras, não salvar as aparências, gritar inconveniências e não mentir o tempo todo que nunca quiseram transgredir, a Vida e suas faces desnudas era real e intensa e ardia uma chama feita de todo o Bem e todo o Mal e cuja florescência não se submetia a períodos determinados do ano, nem a conceitos forjados por artimanhas usurpadoras da alegria e espontaneidade. Um cheiro agridoce tomava todo o espaço que se resumia a um exíguo quadrado de paredes nuas sem janelas, apenas um vão de entrada para um exílio moral bem ao gosto dos tribunais cristãos, através do qual os risos e tilintar de louças e talheres de sentimentos de dever cumprido dos convivas faziam-se ouvir provocando perplexidade e angústia vaga naqueles que só desejavam ser incluídos e cujos anseios clamavam por migalhas que vez ou outra lhes chegavam por aquelas mãos avaras e cruéis, mas com muitas reprimendas implícitas e explícitas que nunca os faziam esquecer de sua condição de marcados a ferro em brasa pela Flor de Liz da racionalidade estéril, geradora de manuais de condutas aceitáveis. Enquanto os convivas saboreavam suas imagens em espelhos coniventes aonde se viam cumpridores mas também escravos de regras e princípios, formigas construíam seus castelos de areia, insanas e alheias, cigarras se esganiçavam no verão tropical, os pássaros voavam alto sobre tudo e todos. Somente os humanos enredavam-se cada vez mais em sua própria teia de contraditórias posturas que ao final das contas relegavam todos a uma vala comum de pobres diabos, os que subjugam, batem, discriminam e os que ousaram elevar os olhos acima da mediocridade imposta por séculos de medo do demônio, falso puritanismo e esterilidade de intelectos neuróticos.

        Mea culpa, minha culpa, minha máxima culpa... eu me curvo diante de ti e peço humildemente perdão pelos meus pecados... isolada aqui neste exílio aceito por teimosia, amor não pode ser, aceita a condição a mim imposta de jamais comparecer ao salão dos puros e impávidos convivas, recebo a tua esmola sob os lençóis , aceito a tua mão na minha por debaixo da mesa, te recebo às escondidas como rameira, tu que dizes jamais julgar a uma mulher, mas usufruis da presença da mesma mulher desde que os teus iguais não o saibam, tu que desmoronas na tua própria contradição e nem percebes que tua infelicidade tão proclamada é somente o preço pago por todos nós que tentamos insanamente negar a nossa natureza, andar em trilhas estranhas e inadequadas aos nossos pés de bichos,teorizando demais o que não precisa ser sequer pensado. Relegados estamos enfim todos nós quando mal tocamos a superfície do nosso verdadeiro Ser. Nem humanos, nem desumanos, apenas equivocados sob os séculos, soterrados de contraditórias certezas, infiéis a nossa mais profunda Verdade.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 24/01/2010
Código do texto: T2048465
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