Pés descalços, Deus.

Eu não acredito em Deus.

O “Deus”, assim coisa-dogmática estilizada tão bem definida em que se tem fé e por quem se senta em bancos com estranhos. No entanto penso nele todos os dias. Nele, nisso, no conceito em si.

Se você perguntasse a alguém que me conheça, diriam-lhe que isso é estúpido, que não acredito nada. Por outro lado, se perguntasse a outras pessoas se então sou atéia, elas o achariam um louco, porque não sou.

Se perguntasse a mim, eu enrolaria tanto que você desistiria de saber.

Fica difícil definir. Acredito ou não? Nesses tempos, nada em verdade é completamente definível, por mais que a gente tente, por mais que a gente queira que seja assim. Amamos rótulos. Precisamos de rótulos. Queremos definir. Temos medo do desconhecido.

Lancei-me novamente nessa coisa de pensar sobre os males do mundo – e aqui tudo se encaixa, porque Deus, “aquilo”, “isso”, “a força superior que tudo vê”, “uma luz meio mágica com boas vibrações”, a idéia de “algo espiritual”, “superior”, meio metafísico, invenção histórica – enfim, isso seja o que for, só aparece nessas horas. As horas em que pensamos, vemos e sofremos a miséria do mundo. Uma grande invasão do humanismo nos nossos olhares.

Faz já tanto tempo que vou descobrindo que a miséria não é só fome, frio ou drogas, vícios, vidas se acabando, vendendo-se, matando a si mesmas ou a outras, num ritmo de autodestruição fugaz. Parece exagero ou egoísmo, individualismo narcisista pequeno burguês – vai saber. Não é. A miséria também é a rotulação indevida, a traição, a injustiça, o preconceito, um salário baixo, o desemprego, a política brasileira. A miséria também pode ser solidão, saudade, problema estético, lágrima e dor, em toda a parte, em todo o lar, em tudo que a gente acredita humano ou atribui um aspecto humanizado.

Dirijo meu automóvel pelas ruas da cidade, vítima dos problemas mundanos, protegida falsamente pelas portas trancadas e pelos vidros das janelas com insufilm escuríssimo fechadas. Sou vítima de um mal nomeável: o roubo, o assalto, a invasão, o seqüestro relâmpago, o abalo do meu equilíbrio emocional. Não penso em Deus. Apenas dirijo. Não pensemos em miséria com antigos conceitos, vamos logo escandalizar o sofrimento: quem não sofre nem vive.

A minha velha amiga que fica horas a fio chorando acorrentada a um passado vive em miséria. Seu passado pode ser uma rejeição, um casamento falido, um emprego sem sucesso, uma briga com um amigo que se perdeu. Ela pensa em deus e lhe pergunta o que fez para merecer isso. Eu também pensei em deus quando roubaram o som do meu carro, em pleno meio-dia ao semáforo fechado, com um milhão de transeuntes negligentes ao redor e eu completamente só em meio a eles. O moleque que me assaltou também deve ter pensado em deus quando viu, ainda pequeno, outros molequinhos com tantas coisas que ele não podia ter – brinquedos, roupas, freqüência na escola, tv a cabo. A sua mãe deve ter pensado em deus quando ele lhe perguntou porque ele não tinha todas aquelas coisas.

Eu penso em Deus em todas as esquinas quando nos vemos na sola de seu sapato sendo esmigalhados feito copos. Copos frágeis de cristal. O champanhe de que somos feitos espalha-se pela calçada suja e não há muito o que fazer a partir disso. Vamos escorrendo até o bueiro ou nos deixamos ir à medida que o sol nos leva. Evaporamos, vamos para o esgoto, ou ficamos ali, manchando o caminho de outros.

Penso que é tão triste sermos como somos e não sermos nada, temos nos autodestruído e nos impossibilitado as coisas boas e felizes e deus não faz nada, deixa-nos poderosos donos do mundo e sua destruição absoluta. Aí não sei: que deus seria esse, porque não tudo uma grande bola de gás acidental na ilusão que de ser dona de tudo. Enganamos-nos uns aos outros e não pensamos sobre isso, reproduzimos as ordens e as características certas, mas sentimos uma dor imensa no fundo do coração que não sabemos de onde.

Isso é miséria.

Hoje pensei que talvez Deus não use sapatos e não seja tão impiedoso.

Hoje, pensei em Deus: quando pude sorrir depois de chorar, quando contei besteiras ao telefone sem pretensão alguma, quando vi um filme de uma história de amor bonita e boba, quando minha irmã chegou do trabalho com pão francês fresco e nos sentamos à mesa relembrando histórias de quando fomos crianças. Além da miséria. Além de correntes. Apenas em mim, nos outros, nas vivências, nas esperanças e sobretudo, nas bobagens. Porque daí faz sentido até deus. Até a destruição desenfreada que não chega a ser o caos porque existe esse algo menor de sentimento “vale a pena”.

Hoje, dei parabéns a uma amiga que conseguiu um emprego na Espanha e me disse que vai remodelar a vida, aceitando uma oportunidade de mãos abertas. Tão tranqüila. Lembrei-me de deus, das esquinas. Minha amiga vai trocar o champanhe, encher-se de suco de laranja, água mineral, mousse de maracujá. Ela é. Feita de material inquebrável, busca sempre outras calçadas. Ela desvia das solas dos sapatos de deuses vingativos ou encontra os mais bondosos. Nas vivências pequenas de sorrisos e boa fé e bom humor. Deuses descalços e serelepes no caminhar, que cuidam por onde pisam.

Anna P
Enviado por Anna P em 29/07/2006
Código do texto: T204953