Ele sabe.

Certo dia, um homem no alto de seus quarenta e nove anos de idade viu-se, de repente, como réu em uma demanda judicial.

Chegando ao fórum, acompanhado de um advogado cedido gratuitamente pelo Estado, foi ter com o juiz.

Quando chegaram, olhou para a cara do magistrado e o que viu foi um garoto, que não passaria de vinte e quatro anos, magro, óculos com muitos graus, pálido e frágil.

Tudo versarva sobre uma dívida, que o tal senhor cobrara de um devedor, mediante uns golpes de "chico doce", isto é, um pedaço de pau roliço e pesado geralmente utilizado pelas forças policiais para fazer com que os mudos transformem-se em tagarelas.

O crime era o de ter praticado "exercício arbitrário das próprias razões", popularmente conhecido como "fazer justiça com as próprias mãos".

O réu saiu condenado, a pagar multa e prestar serviços comunitários, além ter de indenizar o tal ofendido pelas despesas médicas oriundas dos traumas sofridos.

Na saída, reclamou com o advogado:

_ Doutor, o que esse juizinho sabe da vida? Pela cara dele, vejo que foi sustentado a vida toda pelos pais, nunca trabalhou, só estudou e prestou concurso. Esse moleque nunca viu uma briga de boteco, e acho que nem entrou em um boteco; nunca emprestou dinheiro, e também nunca pegou emprestado. Se bobear nunca comprou nada em loja, sempre ganhou tudo dos pais, nunca entrou em uma delegacia de polícia nem pra fazer a identidade. Inclusive acho que ainda é virgem, jogava bola na sala e soltava pipa no ventilador.

O advogado ouvia pacientemente e somente concordava, enquanto o cliente reclamava:

_ Doutor, esse juiz não sabe quem é aquele cara, um safado que dá o calote em todo mundo, pede emprestado e não paga, e ainda tira sarro da cara da gente. Anda todo enfeitado de corrente de ouro e engana gente trabalhadora. Merecia tomar umas cacetadas para ficar esperto. Tô fazendo um bem para a comunidade ajeitando aquele pilantra.

O causídico prometeu que iria recorrer, e disse a seu cliente que se acalmasse, que tentaria reverter a situação em instância superior.

E o cliente não se conformava:

_ Me diga doutor, o que esse juiz sabe?

O advogado respondeu:

_ Bom, ele sabe ler e tem o poder de aplicar a lei. Foi o que ele fez.

E o homem retrucava:

_ Ele não sabe doutor, ele não sabe como é difícil trabalhar de pedreiro debaixo de sol quente para ganhar dinheiro, ele não sabe quanto custa um aluguel, ele não sabe nem limpar a bunda direito. Estou sendo julgado por um virgem de vinte e poucos anos que nunca deu duro na vida, apenas decorou alguns artigos desse "livrão" que o senhor carrega debaixo do braço e se acha que pronto para julgar pessoas das quais ele "nem sabe nada". Nem dessa região ele é; pelo sotaque de playboy, garanto que é carioca. Se o Estado me dá direito a um bom advogado como o senhor, tem que me fornecer um bom juiz, um cara experiente, vivido.

O advogado mais uma vez acalmou o cliente, dizendo que no Tribunal os desembargadores são juízes mais velhos e mais experientes, e que certamente vão rever melhor o caso e diminuir o valor da multa, e que como foi uma discussão por dívida, seguida de briga, invocaria legítima defesa.

O réu inconformado foi embora, entrando em um coletivo e sumindo na via lotada de carros.

Então, o advogado tomou caminho rumo ao escritório, acendeu um cigarro e foi pensando com seus botões naquilo tudo, principalmente no que aquele juiz haveria de saber...

BORGHA
Enviado por BORGHA em 27/01/2010
Reeditado em 28/01/2010
Código do texto: T2054167
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