Um dedo de prosa (ou Pedaços de histórias)

Andréa e Paulo sairam de São Paulo, onde ministravam aulas na Associação Cristã de Moços, para montar a pousada naquele mundão de águas no sul de Minas Gerais. Ela não costumava entrar na cozinha e nunca havia tido contato com a arte, mas ali, inspirada pelo verde ou pelo muito tempo disponível, é a responsável pelos pães e bolos servidos no café da manhã, pelas pizzas dos sábados à noite e pelos belos e coloridíssimos quadros (de gatos, inspirados em Aldemir Martins), com molduras de junco, que enfeitam as paredes do local. A pousada não é apenas seu trabalho, é sua vida: ali, com a numerosa família reunida, haveria uma festa cigana, à qual todos – inclusive os hóspedes – estavam convidados.

Dona Rita é a dona do camping onde fica a Cachoeira do Gustavinho. Decerto faltam recursos para equipar melhor o local, mas sem dúvida está infinitamente melhor do que era há alguns anos. A taxa de três reais, cobrada a título de conservação, tem feito diferença: as trilhas são seguras, há recipientes para se jogar o lixo e o local reservado aos campistas agora possui água e luz. Mas a natureza continua preservada, as quedas d’água maravilhosas e a vegetação intacta.

Rafael e seu irmão alugaram do pai o ponto de partida para a cachoeira dos Félix, um imenso e impressionante volume d´água que se precipita por várias camadas de pedra, a uma altura que deve chegar fácil a uns 50 metros. Ali, ao lado, não há como sair seco da aventura. A mãe de Felipe deu a ideia de se usar pneus para facilitar o acesso (muito íngreme) à cachoeira, sem custos altos e sem alterar a permeabilidade do solo: os pneus sobrepostos e recheados com pedras funcionam como degraus. Rafael chegou a receber, de uma vez só, mais de trinta Land Rovers lotadas de aventureiros off road, que pediram permissão para que se aboletassem em seu estacionamento gramado e fizeram com que a deliciosa coxinha de galinha que serve não fosse suficiente para todos.

Cris decidiu, num carnaval de paixão e esoterismo, que aquele seria o lugar ideal para que seu sonho do Vale dos Girassóis se concretizasse. O restaurante simples, porém diferenciado em sua gastronomia, fica no alto de um morro, com uma vista linda mas um acesso praticamente impossível em dias de chuva (e de sol também). De qualquer forma, é ali que Cris, com suas especiarias cultivadas à porta e que ela vai colher enquanto cozinha, cria pratos afrodisíacos feitos de temperos secretos que prometem uma noite de amor inesquecível. Talvez advenha daí sua impopularidade junto à população local, no melhor estilo do filme “Chocolate”, com Johnny Depp e Juliette Binoche... Mas no final, junto com o café de bule, dá a escolher a cada comensal uma pedra da sorte, comentando seu significado esotérico e o porquê da aparente casual escolha.

A oficina mecânica do Simão em tese fecha aos sábados à tarde, mas ele pode ser encontrado ali, fazendo seu churrasco e tomando sua cerveja com os colegas. Claro que, assim que terminasse a chuva, poderia dar uma olhadinha no carro, o churrasco ainda ia longe, era só passar lá mais tarde. Porém no posto de gasolina, pessoas sempre dispostas a colaborar também conhecem o Gabriel, que instala som em automóveis e que conseguiria dar uma ajudazinha no problema com esse vidro elétrico, sim senhora.

No Mata-Fome, em frente à praça, soubemos que a enchente da semana anterior havia inundado algumas casas e destruído uma ponte, matando até algumas cabeças de gado. Que o prefeito estava tentando pavimentar a estrada desde Socorro e que até então faltavam dez quilômetros para o seu término. Que a chuva havia diminuído consideravelmente o turismo naquele final de semana. E que a pacata cidade de Bueno Brandão, encravada num canto mineiro da Serra da Mantiqueira e abrigo de inúmeras e belíssimas cachoeiras, possui gente de verdade. Que não nega um dedo de prosa aos visitantes, contando um pouco de tudo, sempre com um sorriso no rosto. E que deixa pessoas como nós, paulistanos ávidos por contato humano verdadeiro, totalmente à vontade - com a alma sorridente e saciada de vida.