ENSAIO SOBRE A ENCHENTE

Meu relógio contava três horas da tarde. Três tambem era o tempo em minutos do qual colocara o microondas para esquentar uma jarra de água. Três era o número de armários na minha cozinha. Olhei sem querer olhar pela janela, chovia torrecialmente, nestes dias em São Paulo fizera-se história com o pior verão dos últimos tempos. Ao longe podia-se ver um bueiro engasgar-se, pela televisão podia-se ver alguamas famílias chorando por terem perdido o nada que possuíam. Senti uma vasta tristeza, daquelas que batem no coração e param na nuca. As minhas janelas faziam um forte ruido, quase com se fossem estourar. Os sentimentos adversos que aquela tarde possuía eram tantos que como um personagem Sheakesperiano podia-se exalar vida em um forte respirar, aquele cheiro de chuva...

O café recém feito fumegava, eu lia as quentes notícias da internet, os fatos eram tão verídicos que causavam dor nos olhos, os rostos tristes e os sorrisos feitos em alguns meros segundos de desilusão, alguem ganhou a Mega-Sena acumulada e não fora eu. Não podia negar que a graça divina me dera um dia para não sair de casa. Os deuses estavam nervosos e a cidade que nunca para estava ilhada, envolta de água, envolta de seu próprio lixo. Deveras poder nadar até a fonte mais próxima e ver de onde saia tanta água mas o segredo estava no céu. Quemei a ponta dos lábios, uma tristeza voadora perambulava pelas ruas, olhava o nível da água subir lentamente e cobria meia roda nos carros parados. Meu relógio ainda contava três horas mas os minutos voaram.

Chorava uma família coberta de lama, sua casa havia caído há poucos minutos e infelizmente não dera tempo de salvar alguns queridos entes. Em um momento todos sorriem nas suas respectivas mesas e se preparam para um almoço ou jantar; no próximo todos estão coberto de lama, seus olhos não conseguem chorar e a vida mudara para sempre. Morre-se fácil e em segundos... Segundos são preciosos, as vezes mortais, um belo segundo esvoaçante que cai junto com a chuva pode derrubar um barranco ou arrastar alguém pela correnteza. Deus está nos segundos.

Uma queda repentina de luz me desliga do mundo. Não há sinal em nada e sinto-me de volta a idade da pedra. Olho pela janela, cruel janela, vejo que a água já passa de um nível seguro e que em breve terei que fazer barreiras de contenção. Preparo-me para deixar meu descanso de lado e me preparar para lutar contra a fúria selvagem da natureza. Agora aquela família que relatava sua desgraça ficara orfão de telespectadores, todos nós que choravamos com suas lágrimas enfim caimos em um limbo de nossa própria realidade. Assistiamos com água até o peito, assistiamos tentando salvar as nossas poucas coisas, assistiamos tentando conter a água. A luz não voltará até amanha, tenho certeza. Tenho certeza de várias coisas, tenho certeza de meus principios, tenho certeza que os eletrodomésticos não são aprova d’água e tenho certeza que tais barreiras de contenção que fiz são inuteis. No fim tudo se alagará e serei mais um chorando no noticiario noturno.

Não vejo meus pés, é uma água lamacenta e suja do qual se torna complicado locomover-se na mesma. Tudo está sobre tudo, tento não perder nada mas sinto que a inutilidade de meus atos apenas me cansam. Dou um pequeno riso involuntário: O relógio parara as três horas da tarde, o microondas queimara em três minutos e não demorara muito para meus trés armários da cozinha boiarem em meio a enchente.