EU NÃO SOU INOCENTE... [EC]


 
            Era mais um dia quente de um mês qualquer de um ano que nunca acabou. Dia de receber a família para o almoço de sábado. Minha filha estava me ajudando com os temperos e reclamando de um gato.


            Impaciente ela me pediu para dar um jeito no ‘bicho’ que ficava trançando em suas pernas e miando. Eu não estava bem, na verdade estava ‘amarga quinem jiló’; naquele dia se eu mordesse a língua morreria envenenada. Peguei um cabo de vassoura para assustar o gato.


            Juro que fiquei horrorizada com o resultado de meu susto. Matei o gato. Todos olharam assustados para mim, que ainda mais assustada, olhava o gato morto cheia de medo e culpa. Ninguém falava nada. Meu esposo colocou o gato morto numa sacola e foi jogar fora. 

               Enganaram-se os que disseram que gato tem sete vidas, ou, justamente aquele já havia gastado seis de suas vidas. Só espero que assim como ele já havia gasto seis de suas vidas, os sete anos de azar destinados aos assassinos de sua espécie também já estivessem no fim.

 
            Terminei de fazer o almoço em silêncio. Neste dia todos os pratos receberam um tempero extra. Gotinhas de lágrimas que teimavam em não segurarem dentro dos olhos e fugiam para as panelas. Acho que até elas, as pobres lágrimas, estavam com medo de mim.  Não consegui comer. A esta altura do campeonato eu estava tão azeda que se comesse alguma coisa seria capaz de ter uma gastrite.

            Fui para o quarto e chorei, não sei se por mim ou pelo gato que  matei. Senti-me culpada por haver potencializado minha dor em um ser indefeso. Senti-me a última das criaturas. À noite minha filha foi à missa. Na volta disse que havia rezado por mim. Senti-me ainda pior.

            O único ponto positivo deste fatídico acontecimento foi que percebi o quanto estava precisando de ajuda.  Matar o gato me fez entender que meu nível de stress havia chegado ao limite e, sem querer, eu poderia ferir qualquer um.


            O sofrimento que estava me matando não me deixaria em paz se eu saísse por ai dando pauladas em gatos ou engolindo minha dor para parecer forte. 

               Resolvi chorar tudo que tinha direito. Sofrer, sem medo de admitir que precisava de colo e que não tinha estrutura de, sozinha, lidar com a dor que crescia dentro de mim. 


            Estava na hora de alforriar meus medos, confessar-me frágil e procurar ajuda. Chegar a esta conclusão foi equivalente a conseguir um habeas corpus para meu sofrimento.          

 
  
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Habeas Corpus
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Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 08/02/2010
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