DEU NO RÁDIO

Será que viver não vale mais nada? Pois deu no rádio, em uma emissora AM. Uma família, faminta e bem saudável, vítima do êxodo rural. Á míngua, com precisão, sem sequer uma ponte ou viaduto para ter onde morar. À míngua, soltos no oco do mundo. Como os retirantes do romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos.

Ele, o cabeça do casal tão carente, Luís Guimarães Selva, 30 anos, e com dois terços da graça levando o nome de um grande poeta brasileiro. Homem forte e produtivo, mas sem ter o que fazer. Ou, melhor dizendo, sem serviço, onde possa botar sua mão-de-obra. .Natural de Pernambuco, escolarizado. E até com histórico escolar, no meio dos andrajos. Sem trabalho, não pede pão. O que quer é trabalhar. No abandono, sem nada na vida.

A mulher de Luís, Vera, ainda mais jovem, sem instrução formal. Cearense de Iguatu, terra natal do grande Humberto Teixeira, o compositor de “Asa Branca”, que elevou aos píncaros a voz da nordestinidade do inesquecível Luiz (Lua) Gonzaga. Vera, mãe de filhinha recém-nascida.

Na companhia do casal de retirantes, aos 16 anos, menina-moça levando a graça de Simone. Irmã de Vera, portanto, cunhada de Luís, lá do sertão também tangida por uma cordilheira de necessidades.

Sem nada mesmo de seu, eles, os errantes sem-teto. Descamisados. Trastes do êxodo rural, sem piedade, em pleno seio do progressista Terceiro Milênio. Mas “progressista” em quê? Somente na produção do êxodo rural. E eles, agora, residentes temporários na igreja do Coração de Jesus, com a permissão dos frades. Mas só durante o dia, porque, à noite, acampam do lado de fora. Neste fevereiro, ao relento, e com a recém-nascida exposta à aragem, à poluição e ao frio noturno.

Na intimidade com a fome, sem nem denotar desespero na voz, a família vai sobrevivendo da ajuda pública. Alguém da filantropia já farejou por ali e prometeu ver o drama de Vera e de Luís. Uma senhora radiouvinte esboça solidariedade, oferece emprego de babá para a garota, que, consultada, disse que vai ver se aceita

Enquanto tudo isso acontece...

Carrões importados cortam as ruas e avenidas de Fortaleza. Diz-se, por aí, que é das capitais brasileiras onde mais flutuam carrões importados. E quem falar de reforma agrária real, séria e verdadeira, além de quadrado e obsoleto, pode ser malvisto como comunista de carteirinha, com foto e tudo o mais. “Democratas” e tucanos são doidos por isto: chapear o desventurado que não comungar com a banda lá deles.

Como única esperança reparadora, no entanto, salvam-se o brioso Congresso Nacional e as nossas insuspeitas Assembleias Legislativas, onde não há – de modo algum, nem de longe – quaisquer fantasmas de corrupção. Façamos justiça, também, aos irretorquíveis Poderes Executivos, sejam eles os estaduais ou o federal, na sua imaculada predestinação histórica de tanto servir ao bem-comum, inclusive metendo dinheiro em cuecas, meias, bolsos e sacolas.

Eventualmente, exceção feita ao Executivo Federal, todos os poderes acham-se abarrotados de empresários papudos, muito bem-sucedidos, a perceber fábulas nos cargos que ocupam, sem nem ligar importância para as vidinhas mixurucas de Vera, Luís, Simone e a recém-nascida.

Fort., 11/02/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 11/02/2010
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