INFERNO PESSOAL

Não restaria um único sonho na noite dela, alias, não restaria um único sonho no dia dela. Ao passar o tempo todo rezando as paredes, rezando à televisão, rezando à privada, no banheiro, com o chuveiro aberto, tonta. Garrafas espalhadas por todo apartamento, livros úmidos, sonhos perdidos. Seu doce sonho agora misturado no doce som da descarga. A água rodopiava num único sentido, a massa laranja descia lentamente pelo cano. Seus cabelos sujos e seu rosto encostado no frio branco do piso. Era uma noite de cão.

Destemia-se por não desistir.

A paz era plausível na sua caótica alma.

Visitara o inferno duas vezes, a primeira na sua tentativa de suícido, quando quase morrera com um corte no pulso. Parara no hospital, mas antes, no quarto, sangrando, fora encontrada por um vizinho que fora reclamar da música alta. Lá estava, sem roupas, com o chuveiro ligado, com o sangue misturado a água descendo pelo ralo. Levada ao hospital uma doce enfermeira cuidou de seus ferimentos. Fizera algum tempo de fisioterapia pois cortara o pulso no lugar errado daí ferira nervos vitais para a movimentação das mãos.

A infermera fora uma mãe.

No tédio da vida, no trabalho diurno de caixa do Mcdonalds ela não podia usar o piercing na sombrancelha. Ao sair o punha como um protesto ao trabalho que tinha que fazer. Passou a cuidar da chapa, virou uma média cozinheira com isso, não comprava mais fast-food, envenenava-se com outras coisas, envenenava-se com fumaça de carros e com relações perigosas.

Visitara o inferno uma segunda vez, uma curta estadia diante um coma alcoolico. Prometera por alguns dias não beber mais, porém, na sua primeira depressão pós coma bebera até cair várias vezes.

Iludia-se.

Pensou várias vezes em sua estranha, estranha,estranha vida sem sentido. “Sentido” sussurava sozinha antes de dormir. Procurava algum em tudo. Quando pequena, perdera-se de seus pais no shopping center, vagara pelas lojas, vagara pelos vendedores do qual quando perguntavam a pequena desorientada sobre seus pais a mesma dizia que morreram. Saiu do shopping e vagou perdida por duas interminaveis horas, vira poucas coisas além de coisas normais, sua aventura durou pouco mas fora uma aventura infantil. Podia-se chamar de “moça-pequena na viagem sem sentido”.

Uma viagem sem sentido... Com o rosto no travesseiro sentia descer uma solitária lágrima.

Levantava-se como um touro próximo do abate, cambaleava pelos comodos da casa, sua embreagues, sua viagem até o inferno pessoal, sua súplica por seu eu interior, perdido eu interior. Deslizou em umas das garrafas e caira no chão com um surdo baque. Sentia uma dor fraca nas costas e uma forte dor na cabeça, mais pelo susto da queda do que propriamente pela queda. Olhava para cima, olhava para o teto, fechava os olhos tentando acordar no próximo dia. Procurava um sentido na escuridão de seus olhos.