MAU-OLHADO

Sá Evira era uma mestiça índia, tipicamente mameluca, cara larga, maçãs do rosto bem salientes e olhos discretamente amendoados. A pele, já bem sofrida pelos anos ao sol, apresentava muitas rugas; os cabelos lisos, esvoaçantes e sempre despenteados e a voz rouca, grave, andar lento e um balanço ritmado e constante da cabeça completavam, de uma maneira bem simplista, o seu perfil.

A praga do Guilherme logo disse que Sá Evira tinha shimmy na cabeça. Shimmy era um balanço tremendo que acontecia nas rodas dianteiras dos jeeps de antigamente quando você corria um pouco mais. Não sei agora se era defeito ou algum truque dos nossos coirmãos de além-mar: regulador automático de velocidade.

- Se correres em demasia o carro se desmanchará todo, ô pá!

Bem bolado. Mas também para quem inventou a roda não é surpresa nenhuma. Não sabia que foram eles os inventores da roda? Pois, pois! Foram! Mas era quadrada. À medida que o carro ia andando, tuco, tuco, tuco, gastavam-se aquelas pontas e a roda ficava redonda. Então eles a jogavam fora por estar imprestável e colocavam uma outra... Quadrada, claro! Tuco, tuco...e assim colaboraram para a evolução do mundo.

Mas eu estava falando da Sá Evira. Sou meio enrolado e de vez em quando esqueço. Ela era a lavadeira das roupas da fazenda e também a melhor rezadeira do lugar. Mau-olhado, quebranto, espinhela caída... Até costurava destroncamento das juntas. Lembro-me dela fazendo a costura de um mau jeito que papai deu no tornozelo.

Não fazia trabalho pesado. Isto era com Luiz Lucas que sabia até bater o canjerê, mas papai desmascarou-o...

- Psiu! Você já escreveu sobre isto! Hã? Eu já tinha esquecido!

Lá existia uma menina, já mocinha que era vezeira em ter ataques, faniquito ou acesso, sei lá qual deles ou todos eles juntos. Não se podia contrariar a vontade dela... Brucutu! Desmantelava-se no chão. E era aquela correria: esfrega álcool no pulso, abana, bate na cara, bota toalha molhada na testa e toda aquela gritaria. Ah! Também lenço enrolado na boca para não morder a língua.

Quando ela melhorava, ia direto para casa de Sá Evira. Sentava a bichinha no pilão junto à porta da cozinha e a maga saía ali pelo pasto ao redor da casa colhendo uns raminhos de vassourinha bem tenros e iniciava a benzedura. Batia levemente com eles na cabeça, ombro direito, ombro esquerdo, peito e depois sacudia para o lado como se os estivesse limpando, jogando alguma sujeira fora. Ao mesmo tempo rezava baixinho e a sua voz grossa, rouca mais parecia um gato ronronando. E repetia aquilo um monte de vezes.

Isso tinha uma razão de ser, pois somente o mal sairia do corpo da criatura se os ramos ficassem bem murchos. Depressa não iria acontecer nada, mas se ficasse cozinhando o galo e naquele calor do Valão, não haveria galhinho de vassoura que aguentasse.

Lá na roça quem mais tinha fama de mau-olhado era o Dico, mulato forte e, juntamente com Zé Mafalda, fazia a parelha de beques do time de futebol do Nelson e Nilson. (Não! Não era nome de junta de bois de carro, não! São meus tios, irmãos de minha mãe.) Lembro-me ainda de outros jogadores do time: Manoel Tropeiro era o goleiro, Vanico e Luiz Barbeiro, bons jogadores no meio, mas o Nelson era muito ruim de bola. Deus me livre! Jogava porque era o dono do time e o responsável em enviar os ofícios convidando outros times para um embate. Mesmo assim somente deram para ele a ponta esquerda. Barra pesada! Nego jogando na ponta esquerda e sendo dono do time tem que ser mesmo muito perna de pau, bola murcha da maior grandeza.

Mas eu estava falando de mau-olhado. Lá na fazenda fazia-se sabão. Verdade! Iam-se juntando as banhas das barrigadas dos porcos e sebo dos bois e depois mamãe, a fabricante, colocava tudo aquilo num grande tacho, juntava com cinzas, soda cáustica e ficava mexendo com uma grande pá de madeira. Fogo alto. Depois que estava com a consistência de massa despejava em formas e deixava esfriar para ser cortado em pequenos pedaços, a barra, para usar mais tarde.

Se o Dico aparecesse por lá, mesmo que a massa já estivesse consistente, tudo aquilo desandava, liquefazia e podia jogar fora, não havia mais jeito. Quando mamãe fazia sabão, Dico era avisado e proibido de aparecer na fazenda. Se for mentira, culpem os mais velhos, porque eu era muito pequeno para ser testemunha. (Tô tirando o meu da reta! Cê besta!)

E pra que fazer sabão? Pra lavar as coisas, ô mané! Você pensa que naquela época existia sabonete perfumado e branquinho, xampus ou condicionador? Tinha nada! Nego tomava banho, lavava cabelos com aquilo com um cheirinho nada agradável. Depois, para tapear, mandava ver na brilhantina ou no óleo Glostora nos cabelos; as mocinhas abusavam do pó de arroz, ruge nas bochechas e aqueles batons supervermelhos lambuzando os lábios na tentativa de mascarar a anemia provocada pelo monte de necátor e lombrigas abrigadas nas entranhas. Extrato Dirce para perfumar todas as partes do corpo e provocar dor de cabeça em alguém até cinquenta metros de distância. Perfuminho ruim, sô! Era duro!

Não existia base, sombra, lápis, desodorante e bota todos esses troços modernos aí! Ué! Quem não tinha cão, caçava com gatos e seja o que Deus quiser. O tempora! O mores! Já bem dizia Cícero, aquele lá de Roma e que mandava ferro num tal Catilina! Safadão, safadão! A contínua luta do bem contra o mal, dependendo do lado que você esteja jogando naquele momento.

Mas eu deveria estar falando de mau-olhado, Sá Evira... Ah! Dê uma força, vá! Esqueça!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 22/02/2010
Código do texto: T2101143