Benevides

B E N E V I D E S

Quando morei em Belo Horizonte, conheci o Benevides num boteco – o bo-teco do Zé - lá pras bandas do bairro do Bonfim, pertinho do cemitério, que, na-quela época, tinha uma população bem menor, evidentemente. Não tinha nome - o boteco, é claro – mas tinha o Zé, um atleticano fanático e chato – não seria pleonasmo? – barulhento que só ele, mas que, no fundo, no fundo, era boa gente. Mulato serelepe e gozador, dono de um fusquinha meia-dois que, um dia, tinha sido vermelho. Digo “tinha sido” porque, àquela altura dos acontecimentos - ou dos arranhões e encostadas – conservava a cor apenas nos documentos.

Foi ali, portanto, que conheci o Benevides, um rapaz simples e pachorrento, sinuqueiro e cervejeiro nas tardes de sábado e pouco exigente na escolha dos a-migos: uma partida de sinuquinha, uma cerveja rebatida com dobradinha e pron-to. . . já virava Bené! E amigo do Bené, no bar do Zé, desfrutava de todos os privi-légios dos botecos que se prezam, inclusive o de “pendurar” a conta. . .

Com o tempo – e pouco tempo, que Benevides não era sujeito de esconder nada dos amigos – descobri que ele era funcionário público, solteiro, morador nas imediações, freqüentador de bordéis, inimigo de políticos, descrente de religião, admirador de música sertaneja, leitor inveterado de gibis, exímio jogador de da-mas, fã de Batman, chegado numa feijoada. Não sabia nem queria aprender a di-rigir, usava cuecas samba-canção, detestava meias e cintos nos fins de semana; tinha alergia a roupas de lã, mania de deitar fumando, saudades do interior, von-tade de aposentar, raiva de tempo de chuva, certeza de um dia acertar na loteria, gana de enforcar seu chefe e preguiça de levantar cedo. Gostava de bangue-ban-gue, dormia sem travesseiro, sofria das hemorróidas, sonhava com lobisomem, não andava de avião e – durma-se com um barulho destes! – era primo da minha namorada. . .

Daí a nos tornarmos compadres – por antecipação, naturalmente, pois não tínhamos filhos – decorreram poucas tacadas e alguns copos de cerveja.

Um dia perguntei ao Bené qual era o seu cargo na Repartição:

- Sub-chefe de seção.

- Mas que seção?

- Seção, ué!. . .

Não liguei. Já o conhecia tanto que aquela indiferença não me surpreendia. Vim a saber, depois, que o grande problema do Bené, na Repartição, era a pontu-alidade: não conseguia, nem por reza, chegar na hora ao serviço. É que o Bené era vidrado numa cama. Basta dizer que seu expediente começava à uma da tarde, e nem assim conseguia chegar na hora!

O tempo foi passando, meu namoro ficando cada vez mais firme e nossa a-mizade cada vez mais sólida. Fiquei noivo, casei – com a prima do Bené, aquela!.- e acabei voltando para o interior. De vez em quando o Bené aparecia por lá, com desculpa de visita, mas ia mesmo era tomar “umas e outras” e se refestelar com a feijoada que sua “prima” tão bem sabia fazer. Contava as novidades da Capital, xingava o maldito Chefe, perguntava pelo afilhado retardatário e se escafedia no último ônibus.

Um dia, estando em Belo Horizonte, tive notícia de que o meu amigo anda-va meio adoentado. Requerera até licença-saúde: estafa! Que o Bené estivesse doente, tudo bem, mas estafa? Sem dúvida, era mais uma mamparra daquele ma-landro. Estava mesmo era se livrando do Chefe nojento, levantando quando bem entendia, usando seus chinelões o dia todo. . .

E lá fui eu visitar o pretenso compadre. Encontrei-o atafulhado numa bara-funda de lençóis, colchas e almofadas, rodeado de gibis amarrotados e cinzeiros que mais pareciam cinzeiros de maternidade. Aparência tranqüila, robustez nor-mal, semblante feliz!

- Êh! Compadre, cê agora ta n’ua boa, hein? Livre do Chefão, do cinto e das meias. . . Levantando na hora que bem entender. . .

Benevides consertou o corpo na cama, ajeitou o travesseiro nas costas, a-cendeu um cigarro na guimba do outro e arrematou, matreiro:

- Levantar? Ô bobo!. .

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 27/02/2010
Código do texto: T2110351