Possidonio

Lá vem Possidônio, arrastando alpercatas na trilha do rancho, levantando poeira na estrada do rio, da vida ou da morte. Lembrando pescadas longínquas no tempo. Prevendo arrastões pra depois das enchentes. criando maneiras de atrair o dourado, fisgar o moleque ou cevar o piau cada vez mais arisco.

Lá vem Possidônio, matutando no filho distante. De criação, a bem da verdade, mas muito mais filho que muitos que conhecia. A prova disso era que, duas vezes por ano, na semana de folga que ganhava na Capital, estava sempre insistindo em levá-lo pra Vila. Na mulher já perrengue, dizendo que um dia, menos pensasse, um amigo o chamava, que ela morria.

Lá vem Possidônio, pensando no rancho. No novo, é claro. Presente de amigos. De telhas, tijolos, cimento e janela. Fechadura na porta. Fogão – rabo - grande, pra sentar de noitinha, enrolar o cigarro e, tomando um café, papear com as visitas que sempre aparecem. Paredes fechadas, protegendo do vento nas noites de frio. Lugar bem mais alto, onde as águas barrentas não podem chegar. Enchente nenhuma consegue atingir. Mais um mutirão, no domingo, e a casa tá pronta. Como nunca sonhara. Amizade! Quem diria!...

E uma forte emoção toma conta do peito. . .

Lá vem Possidônio, sentindo cansaço, dormências, zonzeiras freqüentes e dores marotas, nas costas, nas pernas, nas tripas e mesmo na boca do bucho. Suando frio, apesar do calor. Sentindo vômito, embora não fosse ressaca e muito menos comida pesada, que há muito evitava. E de repente uma dor mais aguda, que nunca sentira. Uma falta de ar dos diabos, que dava gastura. Ouvidos zunindo, os olhos pulando, a língua crescendo...

Morreu Possidônio!...

No meio da estrada. Não na contra-mão, que a pista era dupla. Não atrapalhando o tráfego, que a estrada não tinha. Poeira, entretanto, acabou levantando, com o baque soturno do corpo-de-cera no chão ressecado, batido. O som arrepiante do facão afiado, furando a baínha e espetando na terra, sob o peso de carnes inchadas. O estalido de barbatanas do guarda-chuva bazé, quebrando-se nas costas de um corpo ainda morno...

Lá está Possidônio, bem no caminho. Barriga pra cima, braços abertos, mãos estendidas, olhos fechados, boca entreaberta, dente nenhum. Perto, o chapéu-de-lebre ensebado, sem fita, sem marca, sem vida. No ombro, a mala de pano, duas cabeças, onde levara as corvinas da semana passada e trazia os mantimentos da próxima. Um pouco de sal derramado e um maço de macarrão número 2, com a ponta pra fora. Pinga, não há. Não bebe. Aliás, não bebia. Se tinha, no rancho, era para os amigos, trazida por outros...

Lá vai Possidônio, deitado de costas na urna singela. Ao redor, os amigos de sempre, calados e tristes. Em todos, o mesmo pesar: não ter construído mais cedo o ranchinho...

Lá vai Possidônio, caboclo tratante: combina com a gente uma pescaria pro sábado e... morre na sexta!...

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 02/03/2010
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