A FOTOGRAFIA

A máquina fotográfica estava sobre a mesa. “Por que logo à penumbra? Perguntou-se”. Tudo ao redor estava em profundo silêncio, como se uma letargia tomasse conta da atmosfera. Nada poderia querer ser visto, tampouco, fotografado. Sobre a poltrona de leitura estava ele, carregando sobre si o cansaço de mais um dia. Sua vontade era de se entregar ao sono, mas os olhos insistiam na contemplação da quase escuridão, das silhuetas das coisas, da visão turva do espaço. Lembrou-se da infância, de momentos que só estavam em sua memória por pura nostalgia. Veio à mente aquela viagem, quando antes do alvorecer, seguiam de carro ele e a família no mais absoluto ermo. Recordava-se da música que tocava na rádio feita para acariciar os ouvidos e acalmar a alma, do cheiro do mato ainda molhado pelo sereno, e da ausência amada que preenchia tudo. Queria trazer aquele instante ao presente, segurá-lo sem deixar escapar. Porém, dele só guardava fugidia lembrança. Para ser bem honesto, às vezes temia que parte daquele pensamento se confundisse com algum sonho que tivera no passado muito mais do que se relacionasse com o que de fato se passou.

Nos últimos anos, investira grande parte da sua renda em seu passatempo favorito: fotografia. Sua máquina era uma verdadeira captadora do mundo. Era tão precisa que dava a impressão de se comunicar com o fotógrafo, ressaltando objetos desejados e desfocando os demais, colorindo alvos de acordo com o tom pedido para a circunstância. Cada foto era uma espécie de obra, um olhar proposital e, por isso, congelado. Ao olhar a máquina mais uma vez, perguntou-se: “O que são as coisas? Elas nem sabem que estou aqui, não são parte de mim nem eu delas, por que eu as desejo, por que eu as tenho?” Era estranho que mesmo sabendo que tudo ao redor era inanimado, nada deixasse de insistir em interpelá-lo. “Desgraça de solidão que nunca me deixa só!” Murmurou.

Quanto mais escurecia, mais era possível ouvir uma voz que vinha do fundo das coisas. Recostado à poltrona, não conseguiu evitar notar as fotografias dispostas pela parede na qual o ocre se acinzentava com a proximidade da noite. Havia três fotos emolduradas em madeira escura, uma espécie de tabaco. Numa delas, ao centro, havia uma bela jovem vestindo uma capa de chuva. A monocromia da imagem impedia de definir a cor dos cabelos, do elegante xale, do resto. Percebia-se que a fotografia fora tirada da interior de um café, pois se via o escorrer dos pingos de chuva pela vidraça e a placa que ela sustentava onde estava inscrito algo como “Café Noir”.

Aquele instante emoldurado falava mais do que se poderia imaginar. Eram as últimas gotas de chuva de uma tarde de primavera. O piso da calçada e os paralelepípedos da rua ainda estavam molhados, conservando algumas poças d’água e uma fina enxurrada que escorria até os bueiros. Não estava frio, mas uma brisa fresca de ar úmido penetrava pelas portas e frestas das janelas. Dentro da cafeteria, como sempre, estava ele sozinho numa mesa para quatro. O cheiro do capuchino e das massas se confundia com o perfume que a brisa trazia, dando-lhe uma sensação de conforto que era confirmada pelos tons pastéis da decoração do lugar. Como de costume, a máquina fotográfica permanecia imóvel sobre a mesa. Subitamente, sua atenção deixou as conversas e sorrisos dos demais clientes e se pôs em direção à moça que passava do outro lado da vidraça. Dava sinais de calma ingenuidade e total descompromisso afetivo. Aquela cena o fez desejar desistir de sua vida solitária em prol de um amor por aquela senhorita; ponderou um tempo sobre isso. No entanto, suas supostas convicções o impediram de levantar e ir aonde ela estava. De repente, ela olhou em sua direção. Foi quando ele pegou a máquina, destampou a objetiva, apontou o canhão e acionou o obturador: o exato instante estava capturado. “Era melhor que fosse assim”, pensou, “a maneira como lidamos com eventos que parecem cruciais determinam irrevogavelmente suas consequências”. Para ele bastava aquele olhar, inalterado num quadro em sua parede.

Ainda imerso em devaneios causados pela visão da fotografia, não se conteve, passando a refletir sobre o que teria acontecido se tivesse a coragem de abordar aquela jovem naquela tarde. Sua mente divagava sobre como teria sido o flerte, o primeiro beijo, o namoro... Sem que se desse conta, seu pensamento já não mais estava no passado, mas no presente. Seu apartamento havia mudado completamente. O ambiente estava tomado por um sentimento diferente, os sofás não estavam mais nus, mas se achavam cobertos por mantas coloridas, os quadros na parede adquiriram novas cores... No sofá maior da sala estava ela, deitada, com um sorriso nos lábios, como se o convidasse para que se deitasse ao seu lado – seu perfume era inebriante. Uma forte buzina na rua o trouxe de volta do quase transe. Prontamente, o apartamento voltou a ser como antes, mais escuro no entanto. Ela já não estava mais ali. O silêncio dos objetos o repreendia, como se quisessem dizer: “Não deveríamos estar aqui, resignadamente daríamos nossos lugares para outros”. Olhou novamente à volta e entendeu o que tudo aquilo significava, e como se pudesse falar com as coisas, disse: “algumas de vocês ainda não sei por que possuo, mas outras só as tenho porque conseguem me dar minhas ausências”. Voltou o olhar para a máquina de fotografar e falou baixinho: “Por isso você é minha melhor amiga, minha caixinha de ausências”. Pensou que se um dia revisse a moça da fotografia, se um dia ela pudesse romper sua solidão, sua máquina continuaria a guardar seus pedaços mais preciosos de vida...

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Ricardo Toledo
Enviado por Ricardo Toledo em 11/03/2010
Reeditado em 11/03/2010
Código do texto: T2133036
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