O PROFETA SEM PROFECIA

Ele era uma figura incomum num lugar como aquele. Ostentava uma barba desfeita, cabelos compridos e desgrenhados, roupas velhas e rasgadas, enfim, poderia seguramente ser um mendigo. Ninguém o havia visto antes, tampouco, sabia-se sobre sua origem e seu destino. Assentado num canto da praça elevava sua voz e recitava poemas, contava histórias, cantava canções e realizava discursos inflamados. Definitivamente não era um iletrado. Alguma sabedoria exótica escorria dos lábios daquele homem. A maioria das pessoas o tomava por louco, outras apenas riam, algumas diziam que ele era um religioso fundamentalista com cacoete de profeta, além daquelas que o esconjuravam. Certo é que poucas paravam por alguns minutos para escutá-lo.

Eu achava bastante interessante o que o palavreiro falava (foi assim que o apelidei). Durante o pouco tempo que esteve em nossa cidadezinha, sempre o seguia a distância. Ele falava sobre tudo, como se fosse um grande entendido do mundo. Eu imaginava que em sua bagagem o palavreiro carregava pedaços de lugares, restos de amores, lembranças de viagens, sorrisos e lamentos. Eram evidentes os livretos, bem simples, alguns pareciam manuscritos; todos fotocopiados.

Era um mistério a maneira como se instalara em nossa cidade pelo breve tempo que por ali passara. Eu pensava que deveria dormir ao relento, sonhando com o que escreveria pela manhã do dia seguinte.

Um dia, durante meu desjejum, fiz um pedido à minha mãe:

- Mãe, me dá um dinheiro para comprar um livro do palavreiro?

Visivelmente transtornada, mamãe respondeu:

- Não quero que você fique andando atrás desse sujeito. Sabe-se lá se não é um louco! Vai saber quais caraminholas ele anda enfiando em sua cabecinha. Aliás, livro a gente compra de gente de verdade, autor renomado, que tem até prêmios por aí. Aí você fica lendo um português todo atravessado e depois sai falando tudo errado. Não, de jeito nenhum!

Fiquei pensando de onde surgiram os autores que eu mais gostava de ler. Talvez constasse em sua certidão de nascimento: “Fulano – predestinado a escritor”. Será que nenhum grande poeta já teve suas poesias negligenciadas pelo grande público?

Enquanto ia para a escola, percebi que o homem lia alguns de seus contos para os transeuntes. Tomei coragem, parei diante dele, enchi os pulmões de ar e soltei as palavras:

- Quero o livro mais barato. Só tenho dinheiro para um salgadinho, uma pipoca e um refresco.

- Irei embora hoje e estou fazendo uma promoção. Leve três pelo preço de um...

Peguei os três. Um era de poesia e os outros de contos. Estava ansioso para ler os livretos, mas simultaneamente triste pela partida do palavreiro. Enquanto os guardava na mochila, alguns colegas me olhavam espantados, como se estivessem surpresos por eu abordar aquele estranho. Porém, antes de seguir meu caminho, tomei novo fôlego e perguntei ao homem:

- É bom ser o que o senhor é?

Em silêncio, o palavreiro enfiou a mão numa caixinha, retirou um papel em branco e escreveu nele algo com uma velha caneta. Enrolou a folha em formato de canudo e a amarrou com uma fitinha, entregando-me em seguida. Não sorriu, mas acompanhou com os olhos quando me retirei.

Ao meio-dia, ao retornar para casa, vi que o homem não estava mais na praça. Eu nunca mais iria vê-lo em minha vida. Mamãe ficou furiosa ao ver os livretos em minha mochila. Queria rasgá-los e só não o fez porque cai em prantos, insistindo que aquilo era só uma lembrança.

Perdi, não sei quando, os livrinhos. Acho que foi numa de nossas mudanças. No entanto, recordo-me bem de alguns contos e poesias. Por algum tempo, procurei de várias formas saber o destino do palavreiro; talvez ele tivesse se transformado num escritor renomado. Porém, a busca foi vã. Ele possuía muitos pseudônimos.

De algo nunca me esquecerei; do que ele escreveu na folha para mim: “Para os viajantes, toda terra é um horizonte; para os navegantes, toda mar é uma promessa de praia; para um poeta, toda folha é sempre uma promessa de horizonte, porque é isso que eu sou: um profeta sem profecia”.

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Ricardo Toledo
Enviado por Ricardo Toledo em 17/03/2010
Reeditado em 17/03/2010
Código do texto: T2143990
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