BAFAFÁ DE EUFEMISMOS

O étimo de “eufemismo” nos diz que o termo é oriundo do grego, ‘euphemismós’. E, no Aurélio, o dicionário, quer significar “1. Ato de suavizar a expressão duma ideia substituindo a palavra ou expressão própria por outra mais agradável, mais polida. 2. Palavra ou expressão usada por eufemismo.”

Essas informações de ordem etimológico-semântica não vêm, aqui, muito ao caso. Para mim, eufemismo é o camarada querer “tapar o sol com uma peneira”. Pessoalmente, às vezes, como todo cidadão que se pensa de bem intencionado, uso e abuso dos eufemismos. Mas existem alguns deles, chamados “politicamente corretos”, que são insuportáveis.

Fica bastante claro que, ao telefone, se minha avó tem certos problemas cardíacos, eu não lhe faria um comunicado, nestes termos: “Oh vovó, o seu caçulinha e meu tio José, acaba de ‘morrer’ em um acidente de moto.” Ter-se-ia que arranjar um eufemismo qualquer, mais suave, isto está bem patenteado. E nem sequer empregar o amaciamento do “falecer” ou “Deus levar” iria contribuir com a solução do caso da minha vovozinha.

Quando rapaz novo, por exemplo, se eu não ia bem com a namorada, utilizava-me de um eufemismo, o qual, ainda hoje, faz parte da minha linguagem: “não andar bem dos pés”. Tinha qualquer raivinha de algo ou de alguém e lá disparava o meu disparate: “Hoje não estou nem um pouco bem dos pés.” E o grilo, na verdade, estaria na cabeça, não nos pés.

Só estou falando tudo o que já desabotoei acima porque ouço, diariamente, na mídia – rádio, jornais, televisão, internet, etc. – um monte de eufemismos bobos.

Proíbem o repórter policial, com base num código de leis dos tempos do onça, de falar ou escrevinhar que um menor de idade foi ou está “preso”. Você tem, por obrigação, é de ler ou escutar que o gajo foi ou está “apreendido”. Uma ova! Se infrator, e pegado com a mão na massa, eu, como repórter policial, não iria com essa de eufemismo. Lascaria, no papel, ou no ar, era assim mesmo: “O rapaz, menor de 15 anos, após o assalto a uma freira, foi preso em flagrante, quando tentava escapulir-se dos policiais.”

Ou, por outra, também se, em flagrante, um infeliz comete os crimes mais hediondos – acabou de assassinar um magote de gente da própria família, incluindo até crianças – e vai segurado por alguém, ainda com a arma da hecatombe à mão. Aí vem de lá a sacrossanta legislação de um Congresso preguiçoso, manda que você só diga ou escreva na imprensa deste modo: “O ‘suspeito’ dos crimes em família confessou a tragédia friamente.” “Suspeito” é uma ova! Nem se devia assinalar o terminho eufêmico “suspeito”. Ora, pois não! Euzinho, aqui, diria mesmo, com todas as letras e tintas de muita ênfase, era “o desalmado ‘assassino’ dos familiares...”

Suspeito seria eu, se, visto por último saindo de uma sala, alguém percebeu que houve o desaparecimento de uma caneta de ouro, lá da mesinha do gabinete. Ninguém me observou ou filmou no furto, mas as primeiras evidências, sob o ponto de vista de uma investigação da polícia, recairiam em mim. Apenas um suspeito, em potencial.

Ouço esses pretensos líderes comunitários, num verdadeiro bafafá de eufemismos, pela televisão ou pelas ondas do rádio: “La na nossa ‘comunidade’ todo mundo se liga nos problemas sociais.” E eles estão cobertos de razão. Têm mesmo é que se ligar aos fatos da sociedade, vale dizer, da comunidade, senão a safra de salafrários da politiquice ainda será maior. Mas sempre “comunidade”, “comunidade”, em substituição completa ao depreciativo – só na concepção, lá deles, líderes comunitários – terminho “favela” é bobagem muita, para seu ninguém botar defeito. Favela é comunidade, sim. Todo pequeno aglomerado humano é comunidade, mas querer extirpar a palavra “favela” é um pedantismo só encontrável na chulice dos doutos comunicadores do neoliberalismo.

Lembro-me de, uma vez, ter lido uma crônica do grande Rubem Braga na qual o cronista capixaba recomendava aos repórteres policiais que evitassem o sensacionalismo em seus textos jornalísticos. De fato, isto é ruim. Mas é hipócrita suavizar, jogar eufemismos para cima do leitor ou do público, pela via do jornal televisivo.

Um radialista, em Fortaleza, costumava sentir orgasmo na voz quando anunciava um crime, desta maneira, alongando-se na inflexão emocional da pronúncia. Ele descascava o verbo assim: “José de Tal, residente no Oitão Preto, foi assassinado com uma profuuuuunda facaaaaaada no tórax.” Isto era cruel; minhas ouças davam pinotes de insatisfação.

Para mim, criminoso confesso, e em crime que não foi em legítima defesa, mesmo que negue o delito, mas com farto arsenal de testemunhas, tem mais é que arcar publicamente com o ônus da sua atrocidade. Não aplaudo, para o caso, o uso bonitinho dos eufemismos. Eufemismos só com fins estilísticos, literariamente falando, e ainda com parcimônia. Jornalística, histórica e sociologicamente a vida não pede maquiagens: pão, pão, queijo, queijo. “Tapar o sol com uma peneira” é para os muito idealistas. Ou para os abilolados.

Vou deixar que você, caro leitor, mais observador que este cronista marruá, acrescente o rol dos eufemismos idiotas que a sociedade de consumo cria, hodiernamente, a fim de os “espertos” engabelarem melhor os desprovidos do senso de observação. E insisto, batendo o pé: para mim, criminoso declarado e explícito não é suspeito em coisíssima alguma, mas criminoso mesmo. Favela também é uma comunidade, mas não vou aceitar só assim chamá-la, entortando-lhe o nome real. Por isso é que dou logo nome aos bois: favela, sim, senhor. Sem eufemismos que desbotem o fato ou coisa e sua tragicidade.

Fort., 19/03/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 19/03/2010
Reeditado em 19/03/2010
Código do texto: T2147180
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