Lembranças de Mim

Penso a lembrança como algo pertinente à consciência abstrata, uma idéia que, a partir de um momento que reporta, traduz o sentimento e justifica o tempo que vivemos. Das memórias da infância, lembro de meu pai postulando a importância da caligrafia e da oratória, dos serões de história e geografia, das leituras (em voz alta) da Odisséia de Homero, das aventuras de Júlio Verne e de minha consternação pela saga de Jean Valjean em “Os Miseráveis” de Victor Hugo. Ainda o contraste do velho sofá/cama azul com o novíssimo piano de armário Essenfelder que, ao me ver de seis anos, poderia, a qualquer momento, pelo peso e imponência, afundar as tábuas do velho assoalho da sala.

O pequeno chalé amarelo com janelas vermelhas abrigava os meus sonhos e os desejos de minha família. Nem tanto os objetivos de meu pai que, depois de labutar no comunismo e ter uma cultura privilegiada, acomodou-se como conferente da Viação Férrea, projetando em nós, seus filhos, suas esperanças político - culturais. Para nossa sorte, minha mãe incorporou essas ideias e as colocou em prática e, diga-se de passagem, com perseverança, abnegação e grande esforço pessoal, vencendo barreiras como sua pouca escolaridade e os parcos recursos financeiros que tínhamos.

Trabalhando como costureira, fazendo pastéis para meu avô vender na vizinhança e administrando de forma espartana suas economias, conseguiu nos proporcionar materialmente a educação necessária para que, mais tarde, pudéssemos escolher nossos caminhos.

Rio Grande era e ainda é uma cidade operária, cosmopolita por aglutinar culturas de muitos povos, foi o começo e a porta de entrada para a colonização de nosso estado. A “Noiva do Mar”, por denominação dos navegantes antigos em razão de, ainda distantes, avistarem suas casas pintadas de branco, na época, a única referência para sua barra revolta e cemitério de muitas embarcações.

Essa foi a cidade de minha infância e, que, dado a sua posição geográfica e a pouca iluminação pública, tinha um céu esplendoroso. Ao sul o mítico Atlântico que, na minha ávida imaginação, guardava polvos imensos, sereias e piratas. Ao nordeste, além dos ventos e tempestades, havia o Saco da Mangueira, lagoa que muito aventurei para espiar as freiras do Educandário Coração de Maria ou caçar camarão ou, ainda, apenas brincar em suas águas. Ao norte a Lagoa dos Patos, com seus pescadores, salgas e mistérios. Ainda havia a rua 1º de maio que, com seus trilhos, se ia ao infinito do mundo, levando e trazendo gentes: trens de ilusão, esperança e sentimento!

A vida era calma e recém anunciavam-se as modernidades como a televisão e as antenas espinha de peixe, o supermercado, e algum ou outro brinquedo eletrônico. Os natais eram muito esperados e recebíamos os presentes após a missa do galo que começava a meia-noite. Dessa época, lembro do caminhão de madeira que todo o ano voltava a árvore com uma nova e flamante pintura. Tirando bola e bicicleta, as brincadeiras tinham época e ninguém precisava avisar, a cultura e a tradição popular assopravam em nossos corações, cada brinquedo a seu tempo e motivo. Com os ventos da primavera; pandorgas no céu, com o frio do inverno; bilboquê, cinco Marias e fogueiras de São João. No outono das folhas; bolinha de gude e barata, no verão; a praia do Cassino onde a farra começava no Papa-Fila e se estendia pela beira-mar.

Presumo que nesse ambiente lúdico fui alfabetizado, pois não tenho lembrança exata de como se deu esse processo. Lembro de uma cartilha surrada em formato paisagem que, poderia ser “Caminho Suave” de Branca de Lima como, também, a “Cartilha do Povo” de M. B. Lourenço Filho, minha mãe também não lembra. Nesse tempo o ensino era regionalizado e qualquer afirmativa no sentido de uma ou de outra seria mera especulação. Citei estes exemplos por perceber nessas cartilhas a mistura dos métodos de marcha sintética; soletração e silabação, misturados ao analítico; formação e comparação de frases. Aprendi a ler e escrever em casa com minha mãe e, isso, por seu testemunho, já que minha memória me leva aos longos exercícios de caligrafia e a leitura completa da dita cartilha e, também de outros livros. Em 1966, prestei prova final do 1º Ano Primário e com 7 anos ingressei diretamente no 2º ano do Grupo Escolar Revocata Heloísa de Melo.

Dacila, minha irmã mais velha, cursava o 1º científico do Colégio Estadual Lemos Jr, referência por sua banda marcial e qualidade de ensino. Rosina, a irmã do meio, ingressava no 1º ginasial da Escola Normal Santa Joana D’Arc, colégio de freiras (para moças) muito requisitado na época. Talvez esse ambiente escolar, conjunto as aulas de piano e, também, o fato de estarmos vivendo um regime político de exceção e, com isso, os movimentos de resistência se pronunciando nas entrelinhas dos textos teatrais, poesia e principalmente nas letras de música, formaram de maneira positiva meu letramento. A falta de opções e de dinheiro levaram minha infância e adolescência a procura do trabalho, da leitura e da consciência política. O gênio difícil de meu pai, as perdas naturais e minhas inseguranças juvenis, contraposto ao poderoso contexto artístico existente, pautaram de forma definitiva minha juventude e minhas escolhas. Tive o privilégio de uma família amorosa, voltada para o crescimento interior e espiritual; educação e cultura no seu sentido mais amplo.

Das vivências desse tempo, formatei minha vida, escolhas e pensamento. Tornei-me um artista e, assim o sendo, tento multiplicar meus saberes e dividir as experiências vividas. Desse modo, por toda minha vida, tive e tenho compromisso firmado com o conhecimento, seja cantando, ensinando ou aprendendo.

Dos anos iniciais, tenho lembrança da Professora Maria Helena e que usávamos calças curtas, gandolas brancas e fazia-mos fila para entrar na aula. Levantávamos a chegada de uma visita ou de um mestre.

“O estudo em geral, a busca da verdade e da beleza são domínios em que nos é consentido ficar crianças toda a vida.” Albert Einstein