SENHORINHA

SENHORINHA

A Senhorinha ajoelhou-se diante do altar e, num instante, reviu toda sua vida. Desde os tempos da infância, no orfanato do convento de freiras francesas, a Senhorinha tinha adotado a sua fé. Na verdade, era sua vontade incorporar-se ao monastério das irmãs que a haviam criado. Mas, por decisão da superiora, quando completou dezoito anos, teve de sair do convento para conhecer o mundo e, só aí então, poderia confirmar seus votos.

Estava completando oitenta anos. Pouco mais de sessenta depois da sua saída do convento. O padre Antonio, que era seu confessor, disse, sorridente, as últimas palavras da missa em homenagem àquela que era sua mais fiel ovelha. Só aí a Senhorinha deu-se conta que havia uma festa preparada para ela por seus muitos filhos e netos, todos reunidos na cidade do interior do Rio onde morava. Muitos vieram de longe para homenageá-la. Eu era um deles.

Conheci a Senhorinha naquele ano. Era avó da namorada, que menos de um ano depois viria a se tornar minha mulher.

Não posso deixar de registrar nosso primeiro encontro, alguns meses antes. Cabelos finos e incrivelmente brancos adornavam aquele rosto rosado e seus profundos olhos azuis, levemente escondidos atrás de um par de óculos pequenos, sugerindo, ao mesmo tempo, delicadeza e intelectualidade.

Recebeu-me com afeto sincero em suas primeiras palavras de boas vindas, com um leve sotaque do interior paulista. Naquela pequena saleta do modesto apartamento, deu-me a impressão que acabara de conhecer uma das pessoas mais marcantes que conhecera até então.

Passamos aquela tarde de sábado juntos, a sós, enquanto a namorada deslocava-se na cidade à casa das tias e primas, preparando a família para o jantar da noite, onde eu seria apresentado.

A Senhorinha fez as perguntas de praxe, sem cerimônia, como as pessoas dessa idade costumam fazer, demonstrando um interesse verdadeiro e amistoso por mim.

Enquanto conversávamos, olhava com indisfarçável prazer sua rica estante, preenchida com incontáveis obras de literatura, despertando-me o desejo de folhear, um a um, cada um daqueles livros. Foi à cozinha para passar o café. Pedi e tive a permissão para explorar a estante. Percebi que a Senhorinha tinha apreciado o meu interesse pelos seus livros. Durante um bom tempo a conversa girou em torno disso – seus preciosos livros. Onde estarão eles, tantos anos depois? Lembro-me que em cada um deles havia uma frase com sua refinada caligrafia: “emprestar é um prazer; devolver é um dever”.

Passou a falar de si quando mencionei seu leve sotaque paulista. Contou-me, docilmente, e sem rodeios, sua incrível história de vida.

Impressionado com o relato, disse a ela que sua vida mereceria um livro e que esperava um dia poder escrevê-lo. Ela sorriu candidamente e convenceu-me que uma história incomum como a dela merecia mais alguns anos de enredo, pois sua vida ainda reservava novos e extraordinários acontecimentos, como pude comprovar nos anos seguintes, até sua morte, quase quinze anos depois que nos conhecemos.

Em sua simplicidade, mostrou-me alguns exemplares do jornal semanal da cidade, onde escrevia uma coluna de crônicas, sempre esperada, lida e relida pelos moradores do local. Pude ler em primeira mão o manuscrito da crônica que havia preparado na tarde anterior e que seria publicada no dia seguinte. Falava de família e de valores cristãos. Essa era sua linha de pensamento naquelas crônicas, como notei naquele dia e nos muitos outros dias que passei naquela cidade nos anos que se seguiram, onde a crônica da Senhorinha era minha primeira leitura do jornal de domingo.

Nossa amizade começava ali, na mútua admiração não de duas gerações distantes no tempo e na idade, mas da certeza de que ambos tinham mais coisas em comum, além do interesse pelos livros.

Soube naquela tarde, que além de escrever crônicas, havia sido professorinha para os meninos e meninas, filhos dos colonos das fazendas onde o marido havia sido capataz e administrador. Era educadora, professora de francês, escritora, poetisa, membro da academia de letras da cidade, além de participar de peças teatrais levadas por grupos de atores da cidade, sempre no papel de uma avó ou de uma senhora idosa. Papel e personagem adequados aquele tempo de infinita simplicidade, como era a vida que vivia.

Anos mais tarde, soube de muitos doutores, políticos e empresários do lugar que tomaram suas preciosas aulas de francês, antes de embarcarem para o Velho Continente. Alguns políticos haviam registrado discursos em homenagem à Senhorinha nos anais do Congresso Nacional, em Brasília.

Ela, que jamais teve a oportunidade de visitar Paris, conhecia a cidade como ninguém, tantos eram os mapas da cidade, as fotos das ruas parisienses, e os relatos de seus alunos-viajantes, que lhe davam esse prazer quando retornaram de suas viagens. Eu próprio, quando estive em Paris, emocionei-me por ela nunca ter podido estar presente e, como eu, participar de uma missa na majestosa Catedral de Notre Dame. Tenho a certeza de que estou perdoado quando, disfarçadamente, guardei o precioso missal no bolso do casaco, que me fora dado na entrada da catedral para acompanhar a missa em francês. Dias depois, enviei-o para ela pelo correio, não como suvenir, mas como forma de dar a minha contribuição e alimentar seus sonhos e devaneios de menina.

Há muito tempo havia enviuvado do marido. Homem simples e rústico, mas, conforme vim saber mais tarde, gentil e atencioso com aquela que veio a ser esposa e mãe de seus seis filhos, um deles, a filha mais velha, minha futura sogra, cujo câncer descoberto um ano antes faria daquela visita comigo, sua última viagem à cidade onde nascera. Minha sogra foi-se duas semanas após minhas núpcias, propositalmente antecipada para que pudesse em vida ver a filha casada.

Hoje, mais de dez anos depois da morte da Senhorinha, senti-me impelido a escrever sua história.

Contou-me ela que desde muito cedo era órfã junto com uma irmã mais nova. A mãe e o pai sofreram um terrível acidente de carro. A família, muito humilde, não podia criar as duas meninas. Ambas foram encaminhadas para um convento de freiras em cidade do interior de São Paulo, distante da cidade onde moravam. Pouco mais de um ano depois, uma das tias maternas, que ainda estava solteira, reuniu condições para criar apenas uma delas. Tomou coragem e adotou a irmã mais nova deixando a Senhorinha sob os cuidados das freiras francesas. Alguns anos depois, uma das freiras que cuidaram de sua criação foi assumir a direção de um convento no Rio e levou a Senhorinha, já quase adolescente. Desde a separação da irmã, por muitas décadas não teve qualquer notícia dela e da família.

Quando atingiu a maioridade aconteceu o que relatei anteriormente. Teve que sair do convento para conhecer a vida fora dos muros santos e confirmar seu desejo de seguir a carreira religiosa.

Por convite de uma moça que havia estudado no colégio do convento, foi para aquela cidade do interior do Rio para viver com a família da amiga.

Foi ali que conheceu o marido.

Disse-me ela que se encantou pelo homem, mas que na verdade não sabia se o que sentia por ele era amor ou desejo de proteção e de ter novamente uma vida familiar.

O casamento, disse-me, não foi um conto de fadas. A diferença cultural e intelectual era nítida e, nos anos de juventude, a jovem Senhorinha por muitas vezes tratou o marido com desprezo por causa da sua falta de cultura. O homem não se ofendia. Com seu modo simples de viver aceitava a esposa como era.

Na fazenda ela logo se interessou pela educação das crianças. Fazia longas viagens conduzindo a charrete que a levava às escolas das muitas fazendas da região.

Como disse, teve seis filhos. Três homens e três mulheres que surpreendentemente eram deliciosamente unidos, principalmente nas adversidades que a vida fez questão de submetê-los. No momento em que escrevo estas linhas, apenas dois deles estão vivos.

Mesmo depois de casada a Senhorinha não abandonou seu dom religioso. Dedicou sua vida para obras cristãs, participando das atividades das paróquias, das missas, escrevendo letras e poemas para os cânticos religiosos. Pouco antes da sua morte os filhos fizeram publicar um livro de poemas. Já separado de sua neta, recebi um exemplar com uma delicada dedicatória, que ainda conservo em meio a outras preciosidades.

Naquela tarde que a conheci, depois de ouvir sua história, não pude deixar de perguntar pela irmã. Não tivera ela mais notícias?

A história que se seguiu deixou-me perplexo e sei que quem me lê poderá tomar-me como mentiroso, pois os fatos que me relatou, mais que surpreendentes, são inacreditavelmente verdadeiros.

Posso ter me esquecido de algum detalhe ou de ter dado maior ênfase a algo sem importância. Por isso, peço paciência aos que me lêem pela minha ignorância ou pela minha absoluta falta de estilo.

A IRMÃ

Naquele convento a Senhorinha tomava conta da irmã mais nova protegendo-a, ajudando-a a vestir-se, a alimentar-se, a ensinar as lições do colégio e as práticas religiosas que ali se cultivava.

Quando a madre superiora chamou as duas à sua sala, foi com receio que deu a mão para a pequena irmã e tentou transmitir uma coragem que ela própria não possuía, agarrando a mãozinha da irmã com força.

Seguiu a freira que as conduzia até a sala da superiora e deu-se com uma das tias, irmã de sua falecida mãe.

A tia, emocionada, abraçou e beijou as duas meninas. Conferiu os rostos, o asseio das roupas, os olhos azuis das duas sobrinhas e chorou.

Não se sabe se o choro foi apenas pelo reencontro ou pela decisão que havia tomado e que iria decidir o destino daquelas duas pequenas vidas.

A superiora assumiou o controle da situação. Não sei se porque já estava habituada com a situação de adoção envolvendo apenas um irmão, tratou de encaminhar a conversa para o fim que viria a seguir.

Calmamente disse às duas meninas que a tia iria levar a mais nova para casa. Assim uma delas poderia ter uma família de novo. A Senhorinha ficaria. Já era grandinha para entender a situação e que estaria em melhores mãos com as irmãs do convento e as demais meninas da sua idade, que já eram suas amigas. E, depois, irmã e tia viriam visitá-las sempre, até que um dia ela, a Senhorinha, pudesse juntar-se à irmã e viver novamente com sua família.

A Senhorinha ficou triste mas não chorou ao ouvir aquelas palavras.

Resignada aceitou como sendo graça de Deus a oportunidade que o Criador estava dando às duas. Assim a irmã poderia ter uma casa e ela..., bem, ela estaria em boas mãos.

Seu profundo sentimento religioso lhe dizia que era uma filha predileta de Deus e que Ele a tinha escolhido para viver junto a Si.

A irmã se foi e nunca mais se viram.

Muitos anos se passaram desde aquele dia em que se separaram.

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A irmã da Senhorinha estava sentada na sua poltrona favorita na rica casa em que morava. Pela janela via a tarde caindo rapidamente revelando as primeiras estrelas quando o marido percebeu que chorava.

O Senhor abraçou a esposa e tentou confortá-la. Já estavam na meia idade e não tinham tido filhos. Tinham apenas um ao outro. A esposa não tinha família. A tia que a criara havia morrido alguns anos atrás. O Senhor era suficientemente rico. Ele e seus irmãos haviam se desentendido quando fizeram a partilha da fortuna do pai. Eram sócios na empresa da família. Com o falecimento do pai ele havia proposto aos irmãos a venda da sua parte na sociedade. Mesmo ficando com uma parte menor ainda assim continuaria muito rico. Pretendia investir na enorme propriedade que possuía próxima à Capital e lotear suas terras, vivendo da administração dos inúmeros terrenos que a propriedade permitiria dividir.

Estavam ambos tristes naquela tarde. Há alguns anos antes haviam adotado uma adolescente que trabalhava no palacete onde moravam. O Senhor gastou uma fortuna pagando para um advogado do interior da Bahia para alterar o registro de nascimento da adolescente e assim registrá-la como filha.

Cuidaram da menina, pagaram seus estudos, criaram-na, deram carinho e amor. Já formada em Direito a moça conheceu um rapaz na faculdade e começou a namora-lo. O rapaz, conhecendo a história da adoção e de olho na possibilidade de fazer fortuna, convenceu a namorada a explorar o pai adotivo.

O Senhor era um homem vivido e, como comerciante, era experiente na avaliação das pessoas estranhas. Há muito tempo o Senhor percebera que a filha adotiva não tinha escrúpulos.

Deu uma boa importância em dinheiro ao casal quando se casaram e os enviou para a vida no exterior esperando que vivessem bem distante de si e da esposa.

De vez em quando, como esperado, eles escreviam ou telefonavam, sempre a cobrar, pedindo mais dinheiro.

O Senhor algumas vezes chegou a enviar o secretário particular ao exterior para livrá-los de alguma enrascada.

Não contou à mulher o que fizera para que ela não sofresse. Para todos os efeitos a filha adotiva estava feliz e bem casada. A opção de morar no exterior deveria ser encarada por ela com naturalidade. Assim são os filhos: cuidamos deles e depois eles seguem sua própria vida.

No entanto, não era pela filha que a mulher chorava. Desde que conhecera a mulher sabia que a esposa carregava a tristeza da separação da irmã.

A mulher ainda chorava quando prometeu contratar um escritório de investigação para tentar localizar a Senhorinha, a irmã que ficara no convento.

Dois anos se passaram e as investigações não tinham sido concluídas. Os relatos do investigador diziam que a antiga madre superiora tinha voltado para a França onde faleceu junto aos familiares.

A atual madre superiora estava no cargo havia algum tempo, transferida de outro convento, mas não sabia do paradeiro da Senhorinha.

Uma das freiras que convivera com a Senhorinha estava viva, mas não lúcida o suficiente para que suas memórias revelassem alguma coisa.

Parecia que sua promessa à mulher jamais seria cumprida. Até que um dia a madre superiora telefonou para sua casa. A Senhorinha havia escrito uma carta ao convento dizendo que passaria uns dias no Rio e desejava fazer uma visita ao convento onde crescera. A madre leu o endereço que estava no envelope e transmitiu ao Senhor.

O Senhor chamou a mulher e pediu que ela arrumasse as malas. Iriam viajar. A mulher perguntou o motivo daquela viagem repentina. O Senhor mentiu. Disse que queria comprar umas terras numa cidade do interior do Rio e iria aproveitar para visitar uns amigos e que gostaria que ela os conhecesse. Chamou o chofer e pediu que preparasse o carro para a viagem. Passariam pelo menos uma semana fora. Que o chofer avisasse a família.

Hospedaram-se no hotel próximo à praça central da cidade. O Senhor pegou a mão da mulher e convidou-a para um passeio na praça em frente. Sua reunião de negócios seria apenas no dia seguinte e gostaria de conhecer a cidade. Sentaram-se em um banco sob uma velha árvore e divertiram-se vendo as crianças correndo atrás dos pombos que caminhavam no passeio, atrás dos pedaços de guloseimas que jogavam. A tarde estava insuportavelmente quente. Era verão.

O Senhor estava apreensivo, mas sabia disfarçar bem da mulher. A ansiedade misturava-se ao medo. Tinha já cinqüenta anos e não sabia como controlar os acontecimentos que estavam prestes a viver.

Tomou coragem, levantou-se e convidou a mulher a tomar um refrigerante no bar em frente. Atravessaram a rua.

O Senhor disfarçadamente conferiu o endereço, desviou-se do bar e decidiu entrar no pequeno portão lateral do edifício de três andares sobre o bar. A mulher surpreendeu-se. Mentiu novamente para ela. Disse que achava que tinha um conhecido que morava ali e que desejava fazer-lhe uma surpresa.

Subiram um pequeno lance de escada. Tocou a campainha do apartamento do primeiro andar. A Senhorinha atendeu à porta e esperou que o Senhor se manifestasse.

O Senhor respirou fundo, viu que a Senhorinha tinha os mesmos olhos azuis da esposa. Tomou coragem. Apresentou-se e apresentou a mulher: "esta é S., sua irmã".

As duas senhoras olharam-se surpresas e se reconheceram. E se abraçaram emocionadas. E choraram enquanto se beijavam no rosto murmurando palavras inaudíveis, mas profundamente emocionadas.

Foi assim que as irmãs se reencontraram.

Isso aconteceu há mais de trinta anos antes que eu conhecesse a Senhorinha naquela tarde de sábado.

A FAMÍLIA

A Senhorinha, já refeita, pediu ao filho caçula que procurasse os irmãos e as irmãs. Com a família reunida apresentou a irmã tão querida.

O Senhor notou com uma pequena ponta de inveja, que embora a Senhorinha tivesse uma vida simples, tinha construído uma família numerosa e maravilhosa.

A Senhorinha fez questão que eles deixassem o hotel e viessem para sua casa. Já estava viúva. Cederia seu quarto para a irmã e o marido.

Passaram os dias e noites que se seguiram conversando sobre a vida que cada uma tivera. Cada uma contou os seus dias vividos, suas aventuras e desventuras, seus sonhos e pesadelos, suas glórias e seus fracassos, seus dias e noites de saudades.

No dia da partida choraram novamente. Desta vez pela breve separação, pois o Senhor prometeu que iria mandar buscá-la na semana seguinte. Mandaria o chofer à cidade para buscá-la e levá-la à São Paulo.

Assim prometeu, assim fez, e fez mais. Reforçou a renda da cunhada com uma pensão mensal, suficiente para uma vida um pouco menos apertada.

A Senhorinha foi a São Paulo. Levou consigo a filha mais velha, minha futura sogra, e um dos filhos homens que pretendia estudar em São Paulo.

O Senhor e a irmã receberam a Senhorinha e os filhos com imensa alegria. Ficaram ali um mês. Ao retornar, Senhorinha deixou o filho com a irmã. O cunhado fizera questão de providenciar um curso caro, mas adequado para as pretensões do sobrinho.

Mais tarde, outra das filhas da Senhorinha mudou-se para a casa da tia. Porém, esta filha apegou-se de tal maneira aos tios que dois anos se passaram e ela ainda não tinha retornado.

O outro filho, que ainda morava com os tios, em uma das visitas à Senhorinha, confidenciou à mãe que a irmã estava diferente, deslumbrada com a nova vida de luxo que passara a ter.

A Senhorinha foi a São Paulo para comprovar o que o filho lhe confidenciara. Notou a mudança da filha. Por força da fortuna, a irmã da Senhorinha era convidada para festas na roda social paulistana e levava a sobrinha consigo. A filha da Senhorinha era apresentada aos rapazes da sociedade e causara boa impressão pela sua beleza e alegria e, talvez, pela fortuna dos tios.

A Senhorinha chamou a atenção da filha e disse que ela deveria voltar imediatamente para casa. A filha chorou muito. Brigou com a mãe e disse que não pretendia voltar.

A irmã da Senhorinha intercedeu pela sobrinha e, inexplicavelmente, demonstrando completa falta de sensibilidade, disse à Senhorinha que ela, a Senhorinha, já tinha muitos filhos. Que não poderia ser egoísta. Por que não poderia "dar" aquela filha para ela? Deixasse a sobrinha viver com ela que seria melhor tratada. Se fosse o caso, poderia até adotá-la como filha.

A Senhorinha, dotada de forte personalidade, arrumou as coisas da filha e arrastou-a de volta consigo. Nunca mais quis conversa com a irmã. Magoada, rompeu de vez com a irmã pela sordidez da proposta.

Essa foi a história que a Senhorinha me contou na saleta naquela tarde de sábado.

Depois do afastamento da Senhorinha com a irmã, os filhos e filhas da Senhorinha não perderam o contato com a tia. Visitaram-na todas as vezes que passaram por São Paulo.

O filho da Senhorinha ainda estudava, por isso continuou a morar com a tia e, depois de formado, passou a ter vida independente na nova cidade já que conseguira ingressar no meio artístico.

Algum tempo depois que as irmãs brigaram o Senhor procurou recompensar a esposa adotando outra filha adolescente.

A história da primeira adoção só não se repetiu porque a índole da nova filha era diferente da índole da filha adotiva anterior. Esta casou-se aos vinte e cinco anos, mas, por exigência do Senhor e da esposa, a filha adotiva e o marido tiveram que morar com eles.

Já não viviam mais no rico palacete, inseguro com o crescimento da cidade, mas em um enorme apartamento que o Senhor havia adquirido em região nobre de São Paulo. O apartamento era enorme demais para o casal de velhos. Nada mais lógico que a filha com o marido passasse a morar com eles.

Mas o marido que a nova filha arranjou em nada diferia do marido da outra adotada. No melhor estilo “bon vivant” o marido passou a usufruir da fortuna do sogro. Tratou logo de fazer um filho, para garantir o seu futuro. Passava as noites com os amigos de farra.

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Os meses se passaram desde aquele sábado que conheci a Senhorinha. Casei-me com sua neta no ano seguinte. Minha sogra, a filha mais velha da Senhorinha, que mudara-se para São Paulo alguns anos depois de casada, e que tinha enviuvado precocemente três anos antes de eu conhecê-la, faleceu do câncer que a consumira, como já relatei.

Um dia fui convidado a uma festa na casa da irmã da Senhorinha. Era o aniversário de cinco anos do neto. O mesmo que o genro “bom vivant” havia providenciado para manter seu futuro. Depois que os convidados se foram, interessei-me por conhecer de perto a irmã da Senhorinha. Já conhecia a sua história, contada pela Senhorinha e por outros parentes que me deram sua versão.

A irmã da Senhorinha parecia-me triste. Tinha mais de oitenta anos e lamentava os erros cometidos com a irmã. Reconheceu seu egoísmo ao querer ter a sobrinha para si, como filha. A sobrinha voltou com a Senhorinha e, pouco tempo depois, casou-se. Quando entrei para a família e conquistei sua confiança para confidências, disse-me que também ela errara, pois, depois de uma infância difícil na fazenda, havia se deslumbrado com a cidade grande, o luxo e riqueza que passou a usufruir. Se soubesse que seria pivô da separação de mãe e tia, jamais teria insistido em ficar. Foi um erro dos seus tempos de juventude.

Vendo a tristeza da velha senhora, irmã da Senhorinha, tomei para mim a responsabilidade de fazer as pazes entre as irmãs. Naquela altura da vida, tendo ambas carregando o fardo das duas separações, era opinião de todos na família que era hora de reatarem. Na primeira oportunidade que tive, viajei para a cidade da Senhorinha e, usando do afeto que havia conquistado junto a ela, fui um a mais a abordar o assunto do reatamento. Acho que fui convincente, pois na viagem de volta trouxe-a comigo e levei-a à casa da irmã. Desta vez não se separaram. Nem tampouco choraram. Passaram uma semana juntas até que no final de semana seguinte levei Senhorinha de volta à sua cidade.

À partir daí passaram a se falar com relativa freqüência. O Senhor voltou a depositar uma pequena quantia mensal na conta bancária da Senhorinha.

Poucos anos depois fui avisado que o Senhor havia falecido. Pediram-me que tratasse pessoalmente dos funerais. Quando cheguei à residência o morto jazia de pijamas, recostado à cama, como se estivesse sentado. A esposa estava abraçada a ele, conversando baixinho como se ele ainda pudesse ouvi-la.

Chamei um médico da vizinhança para atestar o óbito. Tranquei a enorme sala de onde dirigia seus negócios naquele enorme apartamento porque sabia que o genro apareceria a qualquer momento para tomar posse de tudo. Cheguei a retirar a maçaneta do escritório para dificultar-lhe o acesso.

Dois anos antes de sua morte o Senhor havia descoberto que o genro possuía outra família, mulher, filhos e casa montada. Na ocasião o Senhor chamou o genro para uma conversa, fez um arranjo financeiro, passou em seu nome quase a metade da sua fortuna e providenciou o divórcio da filha adotiva que lhe era muito amada. Esta sim cumpriu seu papel de filha como nenhuma filha legítima teria feito.

Tão logo soube da morte do ex-sogro, como supus, o genro correu à casa da ex-mulher chorando copiosamente. Convenceu a irmã da Senhorinha que havia errado ao separar-se da mulher, que ainda a amava e que se culpava por ter dado aquele desgosto ao "painho". Isso se deu bem diante dos meus olhos. Confesso que nem o mais competente ator teria sido tão convincente quanto fôra o sujeito.

Passei aquela noite providenciando o funeral, sozinho, bancando as despesas com meus poucos recursos já que a irmã da Senhorinha me pedira que o funeral fosse "de primeira". Encomendei coroas de flores em nome de vários familiares que estavam por chegar do Rio.

Pela manhã notei que o ex-genro havia sumido. Com excessão da viúva e da filha adotiva, não havia mais ninguém velando o corpo, apesar das inúmeras coroas de flores que encomendei.

Dizem que o velho era sovina e detestado, pois era cruel e impiedoso nos negócios do loteamento. Se um perdia o emprego e atrasava as prestações do terreno, tratava logo da desocupação apropriando-se do terreno e das construções simples que o devedor havia feito com muito sacrifício.

Quando se interessava por recuperar um terreno já vendido e que se tornara valioso, fazia ao proprietário uma proposta bem abaixo da avaliação. Se a proposta fosse recusada, imediatamente baixava os preços dos terrenos de sua propriedade que cercavam o imóvel interessado, como forma de comprovar que sua oferta era bastante razoável. Tão logo conseguia convencer a pessoa a vender pelo valor ofertado, subia o preço dos terrenos ao redor, valorizando-os ainda mais. Assustei-me com a possibilidade de ter, eu próprio, que carregar o caixão, já que não havia ninguém no velório.

A Senhorinha não pode comparecer ao enterro em função da idade, mas tratou de consolar a irmã ao telefone. Os filhos da Senhorinha vieram para os funerais com os respectivos cônjuges, o que me salvou de conduzir o corpo sozinho ao jazigo.

Depois do funeral os familiares trataram de prevenir a tia sobre o ex-genro, mas a irmã da Senhorinha acreditou no arrependimento do ex-genro, abençoando o reatamento da relação com a filha, afinal, segundo suas palavras, aquela casa necessitava novamente de um homem que conduzisse os destinos da família.

Uns dez dias depois do funeral, a irmã da Senhorinha chamou-se à sua casa para reembolsar-me as despesas do funeral. Pagou-me em dinheiro. Dizem que jamais assinara um cheque na vida pois o Senhor guardava enormes somas de dinheiro em casa, num cofre escondido atrás de um quadro. Contei a quantia dada e vi que tinha dinheiro a mais. A senhora disse então que era "gorjeta" e que eu deveria aceitar e comprar uma roupinhas para as crianças. Devolvi a "gorjeta", ainda atônito, tentando disfarçar a humilhação que sentia naquele momento. Respondi que vivia bem e que agradecia sua preocupação com meus filhos.

Alguns meses se passaram e a irmã da Senhorinha chamou-me novamente para uma conversa de aconselhamento. Fui só, a contragosto. Pediu-me dinheiro emprestado pois estava endividada.

Ofereceu-me como garantia um dos dois pianos que ainda lhe restara na sala. O ex-genro, como era previsto, havia levado todos os seus bens. A conta bancária estava limpa. O cofre vazio. Dizem que o ex-genro convenceu o gerente do banco a liberar-lhe o dinheiro, bonificando-o pelo pequeno favor. Até a poupança que o velho depositara na conta da criança, nesta época pré-adolescente, estava vazia. Pelo espanto que me causou na ocasião, estimo que, em dinheiro de hoje, esta poupança contivesse mais de dois milhões de reais. A irmã da Senhorinha estava à beira da pobreza. Os bens imóveis - que eram muitos - estavam indisponíveis por causa do inventário. As prestações dos terrenos vendidos estavam sendo cobradas pela imobiliária do ex-genro, que não repassava as importâncias recebidas. O ex-genro assumira as funções de inventariante e, com isso, controlava o espólio. Felizmente a lentidão da justiça nos processos de inventário impediu o ex-genro de se apropriar totalmente dos imóveis. A irmã da Senhorinha chamara-me também, não apenas pelo dinheiro que necessitava, mas porque precisava confiar em alguém que pudesse dar-lhe algum tipo de orientação. Não havia mais o que orientar. Sugeri que alugasse o majestoso apartamento que ocupava e que mudasse para um apartamento menor, vivendo das sobras entre os dois aluguéis. Teria que mudar radicalmente o padrão da sua vida. Estas sugestões, embora pragmáticas, foram recebidas com frieza pela irmã da Senhorinha, acostumada à vida confortável. Emprestei-lhe o dinheiro na primeira vez e na segunda vez dois meses depois, até que tive que negar-lhe pois tinha minhas obrigações com minha própria família e os tempos, como sempre, eram difíceis. Ademais, tudo indicava que os empréstimos não parariam por ali. Um ano depois mandou-me um piano inglês como forma de amenizar a dívida que possuia comigo e que não tinha condições de saldar. O último bem valioso que sobrara já que aos poucos foi-se desfazendo dos quadros, móveis antigos e de outras coisas.

Morreu no ano seguinte à minha separação, seis anos depois da morte do marido. Disseram-me, anos mais tarde, que estava demente. Poucos foram ao seu funeral. Soube da sua morte quando encontrei um familiar em outro funeral. Não sei que fim levou a filha adotiva e nem seu neto, que nesta altura da vida deve estar com trinta e tantos anos.

A Senhorinha viveu alguns anos a mais que a irmã. Teve a infelicidade de perder seu filho caçula enquanto ainda era viva. Os que sobraram deram-lhe conforto material e familiar. Cuidaram da sua velhice até sua morte com noventa e cinco anos. Era um sábado à noite quando recebi o telefonema de uma de minhas filhas dizendo que a bisavó havia morrido na noite anterior e que tinham tentado me contatar. A Senhorinha já descansava no jazigo quando soube. Ao receber a notícia da morte da Senhorinha sentei-me no sofá da sala, triste, mas, ao mesmo tempo, conformado já que a Senhorinha conseguiu viver uma vida digna e exemplar e foi contemplada com longevidade e saúde.

Deixou netos e bisnetos além dos filhos. O prefeito da cidade decretou luto oficial. Disseram-me que há um projeto de um vereador para dar seu nome a uma das ruas da cidade. Em outro projeto dariam seu nome a uma escola pública ou biblioteca, não sei ao certo. Há uma placa em sua homenagem na academia de letras da cidade. E, não se esqueçam: seu nome consta nos anais do Congresso Nacional, em Brasília.

Dela, além das doces lembranças, restaram-me algumas coisas: a obrigação de escrever a sua história, que ora cumpro; o livro que os filhos publicaram e que fez questão de me enviar autografado, além das inteligentes e brilhantes cartas que trocamos quando vivi fora do Brasil e que conservo em um estojo de charutos escondido em uma gaveta de "recuerdos". Em uma dessas cartas escreveu carinhosamente que eu ainda era seu neto preferido, mesmo depois de separado de sua neta. E que viveria para sempre em seu coração, como também ela ainda vive no meu.

De vez em quando leio as cartas da Senhorinha. Nesses momentos lembro-me daquela tarde de sábado na sua saleta repleta de livros. De vez em quando cobro-me por não ter escrito sua história. De vez em quando, só de vez em quando, lembro-me que a vida que a gente leva é a vida que a gente tem pra viver, enriquecida pela vida das pessoas que nos cercam. E que a força do dinheiro não vale uma boa história de vida. E que cartas são mais do que cartas. São pedaços da vida que a gente nunca vai esquecer que viveu.

Paulo Sergio Medeiros Carneiro

25.03.10

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 25/03/2010
Reeditado em 18/08/2011
Código do texto: T2159013
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