TRATO COM DEUS

Já algum tempo eu não me encontrava com um colega clínico, residente em Cantagalo. Conhecemo-nos há pouco, mas tenho por ele grande simpatia e sinto-me muito bem na sua presença, aproveitando das suas falas, da sua cultura, enfim de tudo aquilo que uma pessoa educada e religiosa pode proporcionar a outras.

Domingo desse estava no Parimá e ele chegou sempre acompanhado da esposa. Ela havia sofrido um acidente leve que dificultava sua locomoção. Assim, cumprimentamo-nos rapidamente e, mais tarde, vi-os numa das mesas à sombra, no gramado, junto ao lago. Como lá havia também uma outra pessoa que eu não conhecia, achei por bem não causar nenhum atrapalho a conversa que fluía animada.

Depois estava só, sentado e almoçando. Sentei ali, a convite dele e entabulamos um papo. Reclamei do seu sumiço, achei-o abatido, sem mencionar isto, claro e então soube do ocorrido. Com detalhes, contou-me que havia sofrido uma cirurgia cardíaca recentemente.

Sentiu-se mal pela madrugada na Semana Santa. Nada, dizia-me ele, assim tão alarmante. Acordou com uma leve sensação de opressão sob o peito, sem radiação ou qualquer outro sinal preocupante. Levantou-se, foi para a sala e pensou no melhor, alguma dor muscular, um mau jeito qualquer e ali ficou aguardando que aquilo fosse passar. Nada!

Pela manhã, ainda com a mesma sensação sentida, encaminhou-se para o hospital e após um eletrocardiograma foi sabedor ser aquilo sugestivo de uma isquemia no músculo cardíaco. Não ficou muito apavorado no momento. Besteirinha que vai melhorar com as medidas que ele tomaria dali para diante.

- Não tenho medo da morte, Badini! Sou médico, religioso, com bastante intimidade com o outro lado e estou tranquilo quanto a tudo isto. Somente eu pedi a Deus que não permitisse sofrimento e que quando a minha hora chegasse, que fosse rápida, fulminante, disse-me ele muito confiante naquilo que sente e acredita.

Foi ao Rio ultimar novos exames e receber aconselhamentos. Depois daquela bateria, ouviu o que nunca imaginou. Colegas especialistas disseram, assim na bucha, que a cirurgia era iminente, pra ontem. Caramba! Foi uma pancada! Realmente nunca imaginou que estivesse a perigo, fosse uma coisinha de nada, como normalmente a gente julga quando nós próprios somos o doente. As coisas ruins sempre acontecem com os outros.

E aí foi descrevendo a sua desdita sufocante. Não sei quantas safenas, mamárias e até radial, elevando o antebraço esquerdo e me mostrando a cicatriz linear. E foi falando com muita calma, tranquilidade e consciente de ter adiado o acontecimento que inexoravelmente chegará numa outra ocasião – seja num futuro muito distante - impressionando-me com a sua fé numa vida futura do outro lado, como se referia à vida eterna.

Quando parou e me deu tempo, eu o surpreendi, pilheriando, com uma espinafração em regra que o fez retirar o garfo da boca, me olhar assustado e depois, rir a valer:

- Mas você fez muito mal, cara! Faz um trato com Deus, depois corre do negócio assim sem mais nem menos e tira o seu da reta? Olhe! Ele estava preparando tudo direitinho como O pediu. Queria dar-lhe um presente digno em retribuição a sua dedicação e lealdade durante toda a vida. Entupiu uma coronária, duas, três, sei lá quantas mais e quando chega a hora vibrante do “grande finale” você vai lá e faz toda aquela lambança? E agora? Um dia você vai ter de enfrentá-lo e com que cara vai chegar lá no Paraíso? Francamente, ô Erly, tenha a santa paciência! Que decepção!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 03/04/2010
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